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quinta-feira, 3 de dezembro de 2009

Nkisse Kaiangu vol. 1


CD Nkisse Kaiangu em homenagem as comemorações a Iansã que aqui na Bahia é sincretizada com Santa Bárbara, neste dia 04 de Dezembro.

IANSÃ


Dia: Quarta-feira
Cores: Marrom, Vermelho e Rosa
Símbolos: Espada e Eruesin
Elementos: Ar em movimento, Fogo
Domínios: Tempestades, Ventanias, Raios, Morte
Saudação: Epahei!

O maior e mais importante rio da Nigéria chama-se Níger, é imponente e atravessa todo o país. Rasgado, espalha-se pelas principais cidades através de seus afluentes por esse motivo tornou-se conhecido com o nome Odò Oya, já que ya, em iorubá, significa rasgar, espalhar. Esse rio é a morada da mulher mais poderosa da África negra, a mãe dos nove orum, dos nove filhos, do rio de nove braços, a mãe do nove, Ìyá Mésàn, Iansã (Yánsàn).

Embora seja saudada como a deusa do rio Níger, está relacionada com o elemento fogo. Na realidade, indica a união de elementos contraditórios, pois nasce da água e do fogo, da tempestade, de um raio que corta o céu no meio de uma chuva, é a filha do fogo-Omo Iná.

A tempestade é o poder manifesto de Iansã, rainha dos raios, das ventanias, do tempo que se fecha sem chover.

Iansã é uma guerreira por vocação, sabe ir à luta e defender o que é seu, a batalha do dia-a-dia é a sua felicidade. Ela sabe conquistar, seja no fervor das guerras, seja na arte do amor. Mostra o seu amor e a sua alegria contagiantes na mesma proporção que exterioriza a sua raiva, o seu ódio. Dessa forma, passou a identificar-se muito mais com todas as actividades relacionadas com o homem, que são desenvolvidas fora do lar; portanto não aprecia os afazeres domésticos, rejeitando o papel feminino tradicional. Iansã é a mulher que acorda de manhã, beija os filhos e sai em busca do sustento.

O facto de estar relacionada com funções tipicamente masculinas não afasta Iansã das características próprias de uma mulher sensual, fogosa, ardente; ela é extremamente feminina e o seu número de paixões mostra a forte atracção que sente pelo sexo oposto. Iansã (Oyá) teve muitos homens e verdadeiramente amou todos. Graças aos seus amores, conquistou grandes poderes e tornou-se orixá.

Assim, Iansã tornou-se mulher de quase todos os orixás. Ela é arrebatadora, sensual e provocante, mas quando ama um homem só se interessa por ele, portanto é extremamente fiel e possessiva. Todavia, a fidelidade de Iansã não está necessariamente relacionada a um homem, mas às suas convicções e aos seus sentimentos.

Algumas passagens da história de Iansã relacionam-na com antigos cultos agrários africanos ligados à fecundidade, e é por isso que a menção aos chifres de novilho ou búfalo, símbolos de virilidade, surgem sempre nas suas histórias. Iansã é a única que pode segurar os chifres de um búfalo, pois essa mulher cheia de encantos foi capaz de transforma-se em búfalo e tornar-se mulher da guerra e da caça.

Oyá é a mulher que sai em busca do sustento; ela quer um homem para amá-la e não para sustentá-la. Desperta pronta para a guerra, para a sua lida do dia-a-dia, não tem medo do batente: luta e vence.

Características dos filhos de Iansã / Oyá

Para os filhos de Oyá, viver é uma grande aventura. Enfrentar os riscos e desafios da vida são os prazeres dessas pessoas, tudo para elas é festa. Escolhem os seus caminhos mais por paixão do que por reflexão. Em vez de ficar em casa, vão à luta e conquistam o que desejam.

São pessoas atiradas, extrovertidas e directas, que jamais escondem os seus sentimentos, seja de felicidade, seja de tristeza. Entregam-se a súbitas paixões e de repente esquecem, partem para outra, e o antigo parceiro é como se nunca tivesse existido. Isso não é prova de promiscuidade, pelo contrário, são extremamente fiéis à pessoa que amam, mas só enquanto amam.

Estas pessoas tendem a ser autoritárias e possessivas; o seu génio muda repentinamente sem que ninguém esteja preparado para essas guinadas. Os relacionamentos longos só acontecem quando controlam os seus impulsos, aí, são capazes de viver para o resto da vida ao lado da mesma pessoa, que deve permitir que se tornem os senhores da situação.

Os filhos de Oyá, na condição de amigos, revelam-se pessoas confiáveis, mas cuidado, os mais prudentes, no entanto, não ousariam confiar-lhe um segredo, pois, se mais tarde acontecer uma desavença, um filho de Oyá não pensará antes de usar tudo que lhe foi contado como arma.

O seu comportamento pode ser explosivo, como uma tempestade, ou calmo, como uma brisa de fim de tarde. Só uma coisa o tira do sério: mexer com um filho seu é o mesmo que comprar uma briga de morte: batem em qualquer um, crescem no corpo e na raiva, matam se for preciso.

terça-feira, 1 de dezembro de 2009

Piadinha Infame e Intolerância Religiosa em Feira de Santana

Foi publicado no dia 11/11/2009 no Blog do Paulão (http://www.programalivredopaulao.com.br) uma piadinha infame e de cunho pré-con ceituso contra simbolo de Culto de Religião de Matriz Africana intitulada: "Baixou o Caboclo" associado o Flailton Frankles então Secretário Municipal de Transporte e Trânsito a Exú Tranca Rua, classificado como “Caboclo Tranca Rua. Posteriormente republicada no Blog da Feira do Jornalista Jânio
Rego (www.blogdafeira.com.br) que questinado pelo editor deste blog disse nao agir com racismo e intolerância religiosa: "nao me lembro dessa piada racista republicada aqui por nós.... lembro é que o BF sempre fez matérias sobre o povo de santo, ,inclusive uma recente onde foram ouvidas pais e mães de santo, entre eles o juiz Walter Ribeiro Junior." As imagens falam por si.

Materia Original: http://www.programalivredopaulao.com.br/totalblog.php?pagina=6&id=11

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Justiça do Rio manda indenizar homem chamado de macumbeiro

Embora seja uma matéria já um pouco velha a colocamos aqui pois serve de base em outras ações visto que a decisão abre uma jurisprudência neste tipo de ação.

Um filho de santo do Rio de Janeiro receberá uma indenização de R$ 3.000 por ter sido chamado de macumbeiro por seu vizinho. Marcelo da Silva Gomes entrou com ação contra o mecânico Mauro Monteiro Pinto após ter sofrido agressões verbais quando passou em frente à casa do vizinho para fazer oferenda em seu culto religioso, em Paty de Alferes.

Candomblé, a origem da ecologia


“Kosi ewe, kosi orixá”

Sem folha não há vida, sem folha não há Orixá, diz a tradição yorubá importada para o Brasil com a mão-de-obra escrava, e que consubstancia a verdadeira experiência naturalista e panteísta da religião Candomblecista. Numa época em que o debate sobre a premência de salvaguarda do ecosistema se tornou transversal às sociedades modernas ocidentais, reforçado pelo protocolo de kyoto, é fundamental olhar as religiões afro-brasileiras, em particular as diversas nações do Candomblé, como exemplo de equilíbrio entre vivência religiosa/comunitária e ecosistema.

O ditado popular yorubá-nagô, kosi ewe kosi Orixá, representa o princípio fundamental de que a Natureza é a mãe de toda a vida, porque ela se liga directamente com as divindades-Orixás, ao ser elemento e representação simbólica da matéria central da divindade. Os negros yorubás, fons e bantus, fundaram a sua religiosidade com base em dois princípios vitais: a memória dos gloriosos antepassados e a força divina da natureza. Esses dois pressupostos transformaram-se, ou melhor, conjugaram-se tornando-se numa mesma realidade. Os antepassados são também forças da natureza. Assim, Oxum (Oșùn) rainha de Ijexá, representa também o rio Oxum que passa na mesma terra, Nàná, divindade fon, representa as lamas como origem das águas, Ossaîn (Òsónyìn) representa as folhas (ewe, insabas), matéria fundamental no Candomblé, onde são chamadas de “sangue verde dos Orixás”.

Nesse sentido, compreender o equilíbrio entre a natureza e o candomblé, a divinização do elemento natural, representa um caminho fundamental na compreensão do comportamento ecológico africano antes da consciência ecológica globalizada. Porque no momento em que o ecosistema se findar, em que não existirem árvores, plantas, águas naturais e cristalinas, pássaros de múltiplas cores, deixará de existir o Candomblé. A religião dos escravos anda de braço-dado com a preservação ecológica. Por isso, para o povo do candomblé e para a APCAB a preservação ecológica é uma questão de fé.

Ewé Gbogbo Kíki Oògùn

“Todas as folhas tem viscosidade que se tornam remédio”


Fonte: http://www.apcab.net/religiosidade-afro-brasileira/candomble-a-origem-da-ecologia/


Onilé, a terra-mãe


Onilé é uma divindade feminina relacionada aos aspectos essenciais da natureza, e originalmente exercia seu patronato sobre tudo que se relaciona à apropriação da natureza pelo homem, o que inclui a agricultura, a caça e a pesca e a própria fertilidade. Com as transformações da sociedade iorubá numa sociedade patriarcal ou patrilinear, que implicou a constituição de linhagens e clãs familiares fundados e chefiados por antepassados masculinos, as mulheres perderam o antigo poder que tiveram numa primeira etapa (um mito relata que, numa disputa entre Oiá e Ogum, os homens teriam arrebatado o poder que era antes de domínio das mulheres).

Os antepassados divinizados tomaram o lugar das divindades primordiais e houve uma redivisão de trabalho entre os orixás. As divindades femininas antigas tiveram então seu culto reorganizado em torno de entidades femininas genéricas, as Iá-Mi-Oxorongá, consideradas bruxas maléficas pelo fato de representarem sempre um perigo para o poderio masculino, e vários orixás tiveram dividido entre si as atribuições de zelar pela Terra, agora dividida em diferentes governos: o subsolo ficou para Omulu-Obaluaê e para Ogum, o solo para orixá-Ocô e Ogum, a vegetação e a caça para os Odés e Ossaim e assim por diante. A fertilidade das mulheres foi o atributo que restou às divindades femininas, já que é a mulher que pári, que reproduz e dá continuidade à vida. Constituiriam-se elas então em orixás dos rios, representando a própria água, que fertiliza a terra e permite a vida: são as aiabás Iemanjá, Oxum, Obá, Oiá, Euá e outras e também Nanã, que como antiga divindade da terra, representa a lama do fundo do rio, simbolizando a fertilização da terra pela água.

Onilé teve seu culto preservado na África, mas perdendo muitas das antigas atribuições. Hoje ela representa nossa ligação elemental com o planeta em que vivemos, nossa origem primal. É a base de sustenção da vida, é o nosso mundo material. Embora sua importância seja crucial do ponto de vista da concepção religiosa de universo, os devotos a ela pouco recorrem, pois seu culto não trata de aspectos particulares do mundo e da vida cotidiana, preferindo cada um dirigir-se aos orixás que cuidam desses aspectos específicos. No Brasil, como aconteceu com outros orixás, seu culto quase desapareceu. Certamente um fator que contribuiu para o esquecimento de Onilé no Brasil é o fato de que este orixá não se manifesta através do transe ritual, não incorpora, não dança. Outros orixás importantes na África e que também não se manifestam no corpo de iniciados foram igualmente menos considerado neste País que, por influência do kardecismo, atribui um valor muito especial ao transe. Foi o que aconteceu com Orunmilá, Odudua, Orixá-Ocô, Ajalá, além da Iá-Mi-Oxorongá. É interessante lembrar que o culto de Ossaim sofreu no Brasil grande mudança, passando o orixá das folhas a se manifestar no transe, o que o livrou certamente do esquecimento. O culto da árvore Iroco também se preservou entre nós, ainda que raramente, quando ganhou filhos e se manifestou em transe, sorte que não teve Apaocá.

Na Nigéria mantém-se viva a idéia de que Onilé é a base de toda a vida, tanto que, quando se faz um juramento, jura-se por Onilé. Nessas ocasiões, é ainda costume pôr na boca alguns grãos de terra, às vezes dissolvida na água que se bebe para celar a jura, para lembrar que tudo começa com Onilé, a Terra-Mãe, tanto na vida como na morte.

# Reginaldo Prandi

Fonte: http://www.apcab.net/religiosidade-afro-brasileira/onile-a-terra-mae/


quarta-feira, 18 de novembro de 2009

5ª Caminhada do Povo do Santo contra a Intolerância Religiosa

Roseli Fischmann: "Escola pública não é lugar de religião"


Acordo aprovado no Senado, que estabelece obrigatoriedade do ensino religioso na rede pública, fere a Constituição Federal

Foi aprovado pelo Senado brasileiro na última quarta-feira, 7 de outubro, o acordo firmado pelo presidente Luís Inácio Lula da Silva e a Santa Sé, em novembro do ano passado, que estabelece a obrigatoriedade do oferecimento de ensino religioso pelas escolas públicas brasileiras. Diz o parágrafo 1 do Artigo 11: "O ensino religioso, católico e de outras confissões religiosas, de matrícula facultativa, constitui disciplina dos horários normais das escolas públicas de ensino fundamental, assegurado o respeito à diversidade cultural religiosa do Brasil, em conformidade com a Constituição e as outras leis vigentes, sem qualquer forma de discriminação."

"Se essa lei for sancionada pelo presidente, nossa constituição será violada", afirma a professora Roseli Fischmann, da Faculdade de Educação da Universidade de São Paulo (USP) e da Universidade Metodista, de São Bernardo do Campo, na região metropolitana da capital paulista. Perita da Organização das Nações Unidas para a Educação, a Ciência e a Cultura (Unesco) para a Coalizão de Cidades contra o Racismo e a Discriminação, responsável pelo capítulo sobre pluralidade cultural dos Parâmetros Curriculares Nacionais (PCNs), coordenadora do grupo de pesquisa Discriminação, Preconceito e Estigma, vinculado à USP, e do Núcleo de Educação em Direitos Humanos, da Universidade Metodista e autora do livro Ensino Religioso em Escolas Públicas: Impactos sobre o Estado Laico, Roseli critica o acordo e fala, nesta entrevista a NOVA ESCOLA GESTÃO ESCOLAR, sobre as diversas e sempre irregulares maneiras de manifestação religiosa no cotidiano escolar.

sexta-feira, 30 de outubro de 2009

O perigo para o candomblé: extrato da entrevista de Pierre Verger para a Revista EXU.


Na edição de setembro/outubro de 1988, a revista EXU, publicou uma entrevista de Pierre Verger concedida a Conselheira Editorial da mesma, Myrian Fraga, com coordenação editorial de JustificarClaudius Portugal, editada pela Fundação Casa de Jorge Amado, Largo do Pelourinho, s/n, Salvador, BA.
Nesta entrevista Verger fala de sua chegada à Bahia, de seu encantamento pela cultura afro-baiana, de preconceito, de seu trabalho como fotógrafo, de início como escritor, etc., mas a resposta de Verger que fez valer toda a entrevista foi aquela que ele adverte sobre os perigos que ameaçam o candomblé.
Vamos reproduzir na íntegra a pergunta da entrevistadora Myrian Fraga e a resposta de Verger, que servirá como advertência, não só para a geração atual, como ainda para as futuras gerações, que tem buscado cada vez mais conhecimentos nos livros. Vejamos a entrevista:

[...]
MYRIAN FRAGA: E o candomblé hoje. Como o senhor o vê nesses quarenta anos, já que a Bahia foi modificada, principalmente pelo turismo?

PIERRE VERGER: O turismo é muito perigoso. Mas o que é perigozíssimo são as teorias dos intelectuais. Coisas que não têm nome, que não se justificam, que não se justificam, mas que são apresentadas com muita inteligência. São coisas muito inteligentes! Mas, inteligente, podem se dizer coisas que são estupidezas tremendas. Muito bem explicadas, mas que são completamente falsas.
Infelizmente, há recentemente coisas publicadas, que dizem exatamente o contrário do que são.
Tem uma pessoa que escreveu que é proibido agente comer as comidas que fazem parte das oferendas que se faz a um certo santo. Fez um trabalho minucioso e conseguiu a confirmação do ponto de vista que queria mostrar, mas que é completamente o reverso. Quando uma pessoa faz um trabalho com uma “hipótese de trabalho”, consegue provar qualquer coisa. E isso, porque baseou a teoria sobre a teoria de outra pessoa, da qual não quero dar nome, que escreve de maneira inteligente, mas que escreve coisas completamente estúpidas. É muito grave! O raciocínio é perfeito, mas a base é falsa. Tem muita gente inteligente que é completamente falsa. E isso é perigoso para o candomblé, porque o conhecimento do candomblé não é conseguido pela gente do candomblé de maneira didática. Nunca um pai de santo, digno de seu nome, ensina as coisas. Eles demonstram como se faz, sem explicar. Se a gente é inteligente, entende o que é.

MYRIAN FRAGA: E a utilização do candomblé, os mitos africanos, religiosos ou não, numa recriação literária? Como vê isto?

PIERRE VERGER: Eu acho que é um meio de usar os mitos africanos para a gente conhecer. Eles são de uma poesia e uma beleza muito grande. Não acho inconveniente algum, se não fizer uma deformação de caráter. Digo que há livros muito bonitos, Vasconcelos Maia, por exemplo. Se não deformar o caráter do santo, por que não.

*********

Nestes tempos de Internet, de tanto informação, contra-informação e desinformação, julguei oportuno registrar um extrato desta entrevista, para que a advertência de Pierre Verger se perpetue através dos computadores. Esta revista consta dos acervos da Biblioteca Mario de Andrade, em São Paulo.

[É permitida a cópia desde que cite a fonte].

terça-feira, 1 de setembro de 2009

Lina, a curandeira: feitiçaria, cultura e poder na Feira de antigamente


Não se surpreendam os leitores se já tiverem lido este texto ou, pelo menos, parte dele em algum outro lugar. Pois o que apresento, nessa edição de “História vista de baixo”, é uma versão rapidamente melhorada de um pequeno ensaio que publiquei no site da Fundação Cultural Palmares.

Na verdade, para que não cresça mais o mentiroso que existe em mim, devo confessar que este texto é um resumo do trabalho publicado nos Anais do II Seminário de Estudos Filológicos: Filologia e História (Editora Quarteto, 2007).

Para além das desonestidades autorais, correndo ainda o risco de está cometendo o crime de auto-plágio, espero que o leitor se deleite com a abordagem sobre um outro crime, mais ainda, sua relação com cultura e poder, na perspectiva da história vista de baixo na Feira de antigamente.


Em 1905, a justiça feirense instaurou um inquérito policial para investigar o assassinato de quatro pessoas em festa de candomblé, a principal acusada era conhecida por suas práticas de curar pelos chamados saberes tradicionais, ou seja, era uma notória curandeira.


A ação judiciária fundamentava sua acusação no artigo 158 do Código Penal de 1890, o qual tratava do crime contra a saúde pública: neste caso a prática de cura vinculada aos saberes mágicos ancestrais afro-religioso era criminalizada.

O caso ocorreu no atual município de Anguera, na época denominado Almas, distrito de Feira de Santana. Ainda no calor da instalação do regime republicano no interior da Bahia, um crime “bárbaro” ocorreu em agosto de 1904.

O que parecia ser uma simples celebração em um terreiro de candomblé, localizado no distrito de Almas, atual município de Anguera, passou a um grande problema para a curandeira Maria Carolina da Cruz, conhecida por Lina. Depois de um estranho desentendimento entre alguns participantes da festa, se desenrolou um conflito corporal entre os mesmos atingindo o fatal índice de quatro mortos. Lina foi responsabilizada pelas mortes, acusada de ter ministrado suas conhecidas “beberagens”.


Para uma primeira vista este seria um caso isolado na pacata e bem quista urbe de Feira de Santana. Entretanto, não se tratava de um simples crime como outros que ocorriam. Era uma chacina que preocupava as autoridades e que não deveria ser tolerada pelo espírito republicano: quatro mortes em um terreiro de candomblé que funcionava na residência de uma das vítimas de nome João Evangelista Pires; e o mais agravante: a suspeita era reincidente e o caso era considerado mais um crime promovido pela prática “bárbara” do curandeirismo e da feitiçaria, conseqüente da ingestão de suas beberagens.

Essa é a versão explicitada nas peças dos Autos correspondentes ao processo movido pela justiça feirense contra Lina, a curandeira. Este caso, que pode ser acompanhado tanto pelo processo crime quanto pelo artigo intitulado “No rol dos culpados: poder e criminalização do candomblé em Feira de Santa Anna”, publicado nos citados Anais do II Seminário de Filologia, evidencia a criminalização das práticas de candomblé, na região de Feira de Santana, como conseqüência da repressão aos saberes de cura denominado curandeirismo, no início do século XX, um importante capítulo da história da saúde pública na Bahia.

A partir de casos como este parece ter a polícia feirense desenvolvido uma campanha sistemática de repressão ao candomblé sob o jugo da perseguição às práticas de cura vinculadas aos saberes mágicos de caráter afro-religioso, citados na então legislação penal como crimes contra a saúde pública, em seu artigo 158.

Curandeiro, feiticeiro ou outro adjetivo que faça referência aos saberes mágicos de matrizes africanas, vinculados às práticas afro-religiosas, deixou muitas pistas em Feira de Santana. A maior parte dos processos criminais, identificados nos arquivos feirenses, movidos contra curandeiros identifica a prática de candomblé.


Em alguns destes o réu é indiciado apenas por bater candomblé sem a autorização do delegado de polícia. Há, então, um elemento importante a ser considerado no tocante à característica das práticas de repressão policial aos adeptos do culto afro-brasileiro em Feira de Santana, constatado inclusive no caso de Lina: as prisões não eram realizadas unicamente por bater candomblé, mas principalmente por exercerem os saberes mágicos afro-brasileiros identificados como “feitiçaria”, “magia negra” e “curandeirismo”. O candomblé era apenas um elemento agravante, o contraponto do saber médico-legal.


É consenso entre muitos estudiosos que a preocupação das elites locais com os saberes mágicos de cura, ou seja, com as práticas do curandeirismo remetem ao período colonial e, no caso de Feira de Santana, existem registros para o século XIX.


Rollie Poppino, por exemplo, em seu livro intitulado Feira de Santana (Editora Itapoã, 1968) informa para seus leitores que apesar da perseguição sofrida pelos curandeiros, por parte da classe médica e dos poderes públicos, a prática do curandeirismo continuou nas zonas rurais do município em todo período contemplado por sua pesquisa, a saber: de 1860 a 1950. Infelizmente, por se tratar de uma nota de roda-pé, o autor não forneceu mais informações a esse respeito, quem sabe ajudaria a entender melhor o que aconteceu naquele candomblé, em agosto de 1904.
Lina, a curandeira, foi protagonista de uma história que, como muitas outras, não se revelou na grande narrativa dos acontecimentos históricos que compõe a epopéia feirense. Agora se apresenta como importante capítulo da história da saúde pública e das práticas afro-religiosas na cidade Princesa, uma história vista de baixo da Feira de antigamente.

Para saber mais:


BRAGA, Júlio. Na gamela do feitiço: repressão e resistência nos candomblés da Bahia. Salvador: Edufba, 1995.

OLIVEIRA, Josivaldo Pires. “No rol dos culpados: poder e criminalização do candomblé em Feira de Santa Anna”. In: QUEIROZ, Rita (org). Anais do II Seminário de Estudos Filológicos: Filologia e História. Feira de Santana: UEFS/Salvador: Quarteto, 2007.

Bel Pires é profissional do magistério superior em Feira de Santana e Coordena o Malungo Centro de Capoeira Angola, entidade que desenvolve intercâmbio cultural com Belém, no Estado do Pará - belpires1@ig.com.br

Acesse:
Malungo Centro de Capoeira Angola
http://malungoangoleiro.blogspot.com

Fonte:
http://www.fsonline.com.br

terça-feira, 18 de agosto de 2009

ÒGUM (ÒGÚN)


ÒGUM (ÒGÚN)

Ògún na África

Ogum, como personagem histórico, teria sido o filho mais velho de Odùduà, o fundador do Ifé. Era um temível guerreiro que brigava sem cessar contra os reinos vizinhos. Dessas expedições, ele trazia sempre um rico espólio e numerosos escravos. Guerreou contra a cidade de Ará e a destruiu. Saqueou e devastou muitos outros Estados e apossou-se da cidade de Ire, matou o rei, aí instalou seu próprio filho no trono e regressou glorioso, usando ele mesmo o título de Oníìré, “Rei de Ire”. Por razões que ignoramos, Ogum nunca teve direito de usar uma coroa (adé), feita com pequenas contas de vidro e ornada por franjas de miçangas, dissimulando o rosto, emblema da realeza para os iorubas. Foi autorizado a usar um simples diadema, chamado àkòró, e isso lhe valeu ser saudado, até hoje sob os nomes de Ògún Oníìré e Ògún Aláàkòró inclusive no Novo Mundo, tanto no Brasil como em Cuba, pelos descendentes dos iorubas trazidos para esses lugares.
Ogum teria sido o mais enérgico dos filhos de Odùduà e foi ele que se tornou regente do reino de Ifé quando Odùduà ficou temporariamente cego.
Ogum decidiu, depois de numerosos anos ausente de Irê, voltar para visitar seu filho. Infelizmente, as pessoas celebravam, no dia da sua chegada, uma cerimônia em que os participantes não podiam falar sob nenhum pretexto. Ogum tinha fome e sede; viu vários potes de vinho de palma, mais ignorava que estivessem vazios. Ninguém o havia saudado ou respondido às suas perguntas. Ele não era reconhecido no local por ter ficado ausente por muito tempo. Ogum, cuja paciência é pequena, enfureceu-se com o silêncio geral, por ele considerado ofensivo. Começou a quebrar com golpes de sabre os potes e, logo depois, sem poder se conter, passou a cortar as cabeças das pessoas mais próximas, até que seu filho apareceu, oferecendo-lhe as suas comidas prediletas, como cães e caramujos, feijão regado com azeite-de-dendê e potes de vinho de palma. Enquanto saciava sua fome e sua sede, os habitantes de Ire cantavam louvores onde não faltavam a menção a Ògúnjajá, que vem da frase Ògún jẹ aja (“Ogum come cachorro”), o que lhe valeu o nome de Ògúnjá. Satisfeito e acalmado Ogum lamentou seus atos de violência e declarou que já vivera bastante. Baixou a ponta de seu sabre em direção ao chão e desapareceu pela terra adentro com uma barulheira assustadora. Antes de desaparecer, entretanto, ele pronunciou algumas palavras. A essas palavras, ditas durante uma batalha, Ogum aparece imediatamente em socorro daquele que o invocou. Porém elas não podem ser usadas em outras circunstâncias, pois, se não encontra inimigos diante de si, é sobre o imprudente que Ogum se lançará.
Como orixá, Ogum é o deus do ferro, dos ferreiros e de todos aqueles que utilizam esse material: agricultores, caçadores, açougueiros, barbeiros, marceneiros, carpinteiros, escultores. Desde o início do século, os mecânicos, os condutores de automóveis ou de trens, os reparadores de velocípedes e de máquinas de costura vieram juntar-se ao grupo de seus fiéis.
Ogum é único, mas, em Ire, diz-se que ele é composto de sete partes. Ògún méjeje lóòde Ire, frase que faz alusão as sete aldeias, hoje desaparecidas, que existiam em volta de Ire. O número 7 é, pois, associado a Ogum e ele é representado, nos lugares que lhe são consagrados, por instrumentos de ferro, em número de sete, catorze ou vinte e um, pendurados numa haste horizontal, também de ferro: lança, espada, enxada, torquês, facão, ponta de flecha e enxó, símbolos de suas atividades.
Uma história de Ifá, publicada em outra obra, explica como o número 7 foi relacionado a Ogum e o número 9 a Oiá-Iansã. Conta a lenda:
“Oiá era companheira de Ogum antes de se tornar a mulher de Xangô. Ela ajudava o deus dos ferreiros nos seus trabalhos; carregava docilmente seus instrumentos, da casa à oficina, e aí ele manejava o fole para ativar o fogo da forja. Um dia, Ogum ofereceu a Oiá uma vara de ferro, semelhante a uma de sua propriedade, e que tinha o dom de dividir em sete partes os homens e em nove as mulheres que por ela fossem tocados no decorrer de uma briga.
Xangô gostava de vir sentar-se à forja a fim de apreciar Ogum bater o ferro e, freqüentemente, lançava olhares Oiá; esta, por seu lado, também o olhava furtivamente. Xangô era muito elegante, muito elegante mesmo, afirmava o contador da história. Seus cabelos eram trançados como os de uma mulher e usava brincos, colares e pulseiras. Sua imponência e seu poder impressionaram Oiá. Aconteceu, então, o que era de se esperar: um belo dia ela fugiu com ele. Ogum lançou-se a sua perseguição, encontrou os fugitivos e brandiu sua vara mágica. Oiá fez o mesmo e eles se tocaram ao mesmo tempo. E, assim Ogum foi dividido em sete partes e Oiá em nove, recebendo ele o nome de Ògún Mejé e ela o de Iansã, cuja origem vem de Iyámésàn – ‘a mãe (transformada em) nove’.”
Ogum é também representado por franjas de folhas de dendezeiros devidamente desfiadas, chamadas màrìwò. Elas serviam de vestimenta aos Igbá Imọlè, os duzentos deuses da direita, dos quais fala Epega, aqueles que, tendo se conduzido mal, foram destruídos por Olodumaré, com exceção de Ogum, que se tornou assim o guia, o condutor dos Irun Imọlè, os quatrocentos deuses da esquerda, os únicos, segundo ainda Epega, de que se pode falar sem perigo.
Esses màrìwò, pendurados acima das portas e janelas de uma casa ou à entrada dos caminhos, representam proteção, barreiras contra as más influências.
Os lugares consagrados a Ogum ficam ao ar livre, na entrada dos palácio dos reis e nos mercados. Estão presentes também na entrada nos templos de outros orixás. São geralmente pedras em forma de bigorna colocadas perto de uma grande árvore, àràbà (Ceiba pentandra), ou protegidas por uma cerca de plantas nativas chamadas pèrègùn (Dracaena fragrans) ou de akòro (Newbouldia laevis). Nesses locais, periodicamente, realizam-se sacrifícios de cachorros e galos, acompanhados de oferendas de vinho de palma e pratos de feijão e inhame cozidos e regados com azeite-de-dendê.
O culto de Ogum é bastante difundido no conjunto dos territórios de língua ioruba e em certos países vizinhos, gêges, como o ex-Daomé e o Togo, onde é chamado de Gun. Ogum é, provavelmente, o deus ioruba mais respeitado e temido. Tomá-lo como testemunha no decorrer de uma discussão, tocando com ponta da língua a lâmina de uma faca, ou um objeto de ferro, é sinal de sinceridade absoluta. Um juramento feito envocando-se o nome de Ogum é o mais solene e digno de fé que se possa imaginar, comparável àquele que faria um cristão sobre a Bíblia ou um mulçumano sobre o Corão.
A vida amorosa de Ogum foi muito agitada. Ele foi o primeiro marido de Oiá aquela que se tornaria mais tarde mulher de Xangô. Teve, também relações com Oxum antes que ela fosse viver com Oxossi e com Xangô. E também com Oba, a terceira mulher de Xangô, e Ẹléfunlósunlórí, “Aquela-que-pinta-sua-cabeça-com-pós-branco-e-vermelho”, a mulher de Òrìşà Oko. Teve numerosas aventuras galantes durante suas guerras, tornando-se, assim, pai de diversos orixás, como Oxossi e Oranian.
A importância de Ogum vem do fato de ser ele um dos mais antigos dos deuses iorubas e, também, em virtude da sua ligação com os metais e aqueles que os utilizam. Sem sua permissão e sua proteção, nenhum dos trabalhos e atividades úteis e proveitosas seriam possíveis. Ele é, então e sempre, o primeiro e abre o caminho para os outros orixás.
Entretanto, certos deuses mais antigos que Ogum, ou originários de países vizinhos aos iorubas, não aceitam de bom grado essa primazia assumida por Ogum, o que deu origem a conflitos entre ele e Obaluaê e Nanã Buruku, dos quais falaremos mais adiante.
Os oríkì de Ogum demonstram seu caráter aterrador e violento:
“Ogum que, tendo água em casa, lava-se com sangue”.
Os prazeres de Ogum são os combates e as lutas.
Ogum come cachorro e bebe vinho de palam.
Ogum, o violento guerreiro,
O homem louco com músculos de aço,
O terrível ẹbọra que se morde a si próprio sem piedade.
Ogum que come vermes sem vomitar.
Ogum que corta qualquer um em pedaços mais ou menos grandes.
Ogum que usa um chapéu coberto de sangue.
Ogum, tu es o medo na floresta o temor dos caçadores.
Ele mata o marido no fogo e a mulher no fogareiro.
Ele mata o ladrão e o proprietário da coisa roubada.
Ele mata o proprietário da coisa roubada e aquele que critica esta ação.
Ele mata aquele que vende um saco de palha e aquele que o comprar”.
Mas os guerreiros, mesmo os valorosos, têm algumas vezes momentos de fraqueza. Uma lenda africana nos conta como Ogum, voltando de uma guerra, em companhia de sua mulher, deixa-se atemorizar pelo coaxar das rãs, e como ele cortou a cabeça de sua mulher, que o havia humilhado contando essa aventura em público. Essa mesma lenda foi publicada por Lydia Cabrera, que a recolheu em Cuba.
Cerimônias para Ogum
Cerimônias dignas de serem mencionadas celebravam-se com regularidade na região de Ahori (no lado nigeriano) ou Holi (no lado daomeano), realizavam-se todas no dia da semana ioruba dedicado a Ogum, ou seja, de quatro em quatro dias. Os Ọsẹ nla (“grandes domingos”) alternavam se com os Ọsẹ kékeré (“pequenos domingos”); os primeiros tinham mais esplendor que os outros. Esta região Ahori-Holi ficava relativamente preservada da ação “civilizadora” das administrações coloniais e daquelas que as sucederam. A estrada que atravessa Holi, ligando Kêto ao sul de ex-Daomé, só foi aberta em 1953, em virtude da natureza pantanosa de algumas partes dessa região, ou seja, apenas sete anos antes da independência desses paises.
Citamos, a seguir, alguns dos numerosos templos de Ogum nessas paragens:
Ogún Igiri em Adja Were,
Ogún Edeyi em Ilodo,
Ogún Ondó em Pobê, em Igbó-Isso e em Irokonyi,
Ogún Igboigbo em Ixedé,
Ogún Elénjo em Ibanion e em Modogan,
Ogún Agbo em Ixapo,
Ogún Ọlópẹ em Ixedé Ije,
Ogún Abẹsan em Ibanigbe Fuditi.
Trata-se de um só e único ogum, cujo segundo nome designa ou o lugar de origem, como Ondô, ou o nome do fundador, ou, ainda, o nome de uma divindade como no último da relação, para qual ele serve de guardião.
O aspecto desses templos era notável. Situados, geralmente, em lugares calmos e isolados, no meio de uma clareira cercada de arvores frondosas. Apresentavam a forma semelhante a de uma cabana redonda, com telhado cônico e pontiagudo, precedidos por uma galeria ornada com pilastras esculpidas. Construídos com materiais locais: engradamento de madeira, telhado de palha ou de folhas de palmeira trançadas, paredes feitas de bambu.
Os templos dedicados a Ogún Ondô eram de estilo diferente. Todos eles tinham em comum o telhado de cumeeira alta, com duas águas descendo quase até o chão. Vistos de frente, pareciam uma muralha elevada, tendo, ao nível do solo, uma entrada cuja verga era tão baixa que só se podia penetrar no interior do templo curvando-se muito, de maneira respeitosa, ou então rastejando-se com apoio dos cotovelos e joelhos.
O templo de Igbo-Isso, apresentado neste trabalho, perto de Aba, conservou essas características. O de Podê, que conhecemos em 1936, era um edifício majestoso com telhados de palha, alto e pontudo, mas, infelizmente, católicos zelosos, estimulados pelos sermões “incendiários” de um reverendo missionário que, do púlpito, esbravejava sempre contra as religiões pagãs, julgaram por bem “ajudar a Providência” ateando fogo ao templo de Ondó numa noite de verão. Foi uma bela fogueira cuja conseqüência foi a reconstrução do templo, com material à prova de fogo, coberto por um telhado de zinco ondulado, semelhante a um galpão ou um galinheiro. Para dar graça ao conjunto e, ao mesmo tempo, amedrontar os incendiários, desenharam, acima da porta, dois leopardos mostrando todas as suas garras.
Ad cerimônias Ọsẹ nlà, em Ògún Ondó, realiza-se numa grande praça, de cerca de cem metros de comprimento por trinta de largura, que era antigamente, uma clareira no meio de uma floresta. Com o tempo essa floresta ficou reduzida a uma estreita faixa de árvores, formando uma cortina medíocre entre o recinto sagrado e a cidade. O templo de Ondó esta situado em um dos lados maiores do retângulo. Defronte, encontra-se outro templo menor e circular, dedicado a Arè, e no fundo, onde devia ser antigamente a entrada da clareira, um templo igualmente circular, de Èşù Ẹlẹgbára. Este conjunto se completa por dois pequenos cercados quadrados, de cinqüenta centímetros de lado, chamados idomosun. Num deles, no começo da cerimônia, colocam-se o osun de cada um dos principais dignitários; o outro é reservado ao osun de Olúpọnahá ainda, em diversos locais, troncos de árvores deitados no chão, servindo de assento aos diversos participantes da cerimônia.
Os principais oficiantes do culto de Ògún Ondó são:
Aláàşẹ, responsável pelo àşẹ do orixá. Ele não entra em transe e seu papel é semelhante ao dos Mọgbà Şangó, do qual trataremos mais adiante. Aláàşẹ era antigamente o chefe religioso mais importante da comunidade e é, ainda, saudado com um título de Kábiyèsí, reservado aos reis. Ele senta-se durante a cerimônia ao lado do templo de Ògún Ondó.
Saba que é assistente de Aláàşẹ, entra em transe de possessão por Ògun Ondó durante o oşẹ;
Ọkẹrẹ, assistente de Saba; são dois em geral, e ambos são possuídos (“montados” – gùn) por Ògún Ondó. Se sentam lado a lado, perto do idomosum.
Isa, que cuida de Arè e toma lugar perto do seu templo, é durante a cerimônia possuído por esta divindade.
Olápòna, que se ocupa de Exu e senta-se perto do seu templo, é por ele possuído por ele muitas vezes, é acompanhado por um Olápòna de um outro templo de Ogún, vindo de alguma cidade vizinha.
Há ainda cerca de outros vinte olóyè, portadores de títulos, que não entram em transe e têm, cada um deles, seu lugar reservado, de onde assistem a cerimônia e dela participam. Entre eles há os ẹgbẹnlá, os soldados de Ogum, armados com grandes facões e longos bastões.
Duas mulheres consagradas a Dúdúa, nome dado na região a Òrìşàálá, sentam-se perto dos Ọkẹrẹ, mas permanecem como meras espectadoras e contentam-se em bater em instrumentos de ferro, em sinal de respeitosa atenção, nos momentos mais solenes. Há ainda as ìyàwó (iaôs) de Ondó, que cantam em seu louvor.
Ao lado do templo de Arẹ instala-se o conjunto, composto de três atabaques e um agogô. Os atabaques são: uma aposi, pequeno tambor em terracota; um ogidan, tambor alongado colocado rente ao chão; e o kele, pequeno tambor com pés.
Os participantes do ọsẹ de Ògún Ondó chegam de manha cedinho. Aláàşẹ, Saba, os Ọkẹrẹ, Isa ou os Olúpọna vestem-se com um pano colorido, amarrado no ombro direito. Têm na cabeça um gorro de palha pontudo, enfeitado com grandes penas de galo e penas vermelhas da cauda de papagaios. Os pulsos são ornados com numerosas pulseiras de contas de vidro de diversas cores. Eles trazem numa das mãos seus osun de ferro que vão colocar no idomosun. Na outra mão, tem um facão e dois grandes chocalhos (ààjà), que são batidos um no outro enquanto caminham. Olúpọna traz ainda um ọgọ, bastão esculpido de forma fálica.
Todos vão se sentar em seus respectivos lugares, com ar severo e recolhido. As ìyàwó de Ògún Ondó em seguida trazendo oferendas de alimentos para as divindades: Ògún Ondó, Arẹ e Èşù. As grandes gamelas são colocadas nas portas dos três templos. Saba, ajudado pelos Ọkẹrẹ, Isa e os Olúpọna levantam-se com a cabeça descoberta, deixando seus gorros, ààjà e facões em seus respectivos lugares e entram em atividade, nos seus templos respectivos, colocados ali uma parte das oferendas preparadas com inhame e feijão, regadas com azeite-de-dendê. Põem uma porção desses alimentos em seus osun para que os antigos titulares do posto, atualmente ocupados por eles, participem também da festa.
Em seguida, fazem oferendas de divindade para divindade e para os diversos olóyè. Isso provoca uma série de idas e vindas em que cada divindade recebe, em troca de seus donativos, um contradonativo dos dois outros. Resulta desses intercâmbios uma refeição comunitária em que participam todos os espectadores do ọsẹ.
Os oficiantes do culto consultam as divindades utilizando nozes de cola para verificarem se os deuses estão satisfeitos, em seguida alguns dos dignitários vão se reunir em um local que era outrora uma clareira adjacente, para deliberarem e comentarem o resultado das consultas. Ao cabo de certo tempo, voltam e sentam-se nos lugares que lhe são reservados.
Um período de calma sucede a toda essa agitação, após o que, os músicos entram em ação. Executam uma série de invocações. Aláposi bate alguns compassos em seu tambor aposi, que esta preso entre seus joelhos; Ológidan, cavalgando seu instrumento ogidan colocado no chão, o acompanha. Esses dois tambores formam um conjunto falante, emitem sons ondulados, de acordo com a pressão mais ou menos intensa de uma das mãos do executante sobre os couros dos tambores, invocando os deuses. O terceiro tambor, kele, está no chão, diante de Oníkele, que nele bate com duas varetas numa cadência extremamente rápida. Vez por outra ele é substituído por um dos seus assistentes, que mantém o ritmo, com a mesma cadência acelerada, criando com seu tom agudo uma atmosfera de tensão nervosa que, em certos momentos, torna-se quase insuportável.
O conjunto toca assim, por períodos interrompidos por curtos e repentinos momentos de silêncio. Essas interrupções contribuem para criar uma sensação de anciosa expectativa. Na sétima vez, os Olúpọna dão um grito estridente. A expressão de seus rostos transforma-se. Põem gorro pontudo, pegam seus ààjà e seus ọgọ, com eles tocam três vezes o chão e levantam-se de um salto. Seus gritos são retomados por Saba, pelos dois Ọkẹrẹ, sentados lado a lado, e por Isa. Enquanto os atabaques fazem suas chamadas, todos passam pelas mesmas fases de tensão e de concentração progressivas. Apertam nervosamente suas mãos, com os dedos entrelaçados, seus músculos se contraem, baixam a cabeça, fazem a testa e cerram os dentes. São, então, possuídos respectivamente por Èşù, Ògún Ondó e Arẹ. Cada um deles dá um grito estridente e levanta-se de um só impulso, saltando muito alto, e vão, apressadamente, reunir-se diante do templo de Ògún Ondó.
A expressão dos rostos mudou de novo. Agora estão com um ar descontraído, folgazão e vagamente alegre, balançando a cabeça e resmungando frases inacabadas. Caminham com passos irregulares, desajeitadamente, levantando muito os pés. Quando param, eles se estremecem e oscilam para frente e para trás, bem devagar.
O conjunto toca sem parar mas em surdina. Os elégùn, possuídos pelos deuses, com Olúpọna à frente, partem em fila e correm ofegantes, com o corpo inclinado para frente e arrastando os pés. Vão em direção à entrada da clareira e a outros lugares, parando um momento agitado seus ààjà, saúdam os quatro cantos do mundo. Em seguida, vão cumprimentar Aláàşẹ, que esta sentado perto do templo de Ògún Ondó. Aproximam-se um a um, passam cuidadosamente seus ààjà e seu facão para a mão direita e com a esquerda apertam a de Aláàşẹ, sacudindo-a com força. Tocam três vezes o chão com seus ààjà, entrechocam-nos com força e regularidade e executam, assim uma verdadeira música de ferreiros que lembra o som do martelo batendo sobre uma bigorna. Formulam, com voz de falsete votos de prosperidade e de felicidade. Vão em seguida saudar da mesma forma todos os dignitários, os tocadores de atabaques, os ẹgbẹnlá e os ìyàwó de Ògún Ondó. O ritmo da música transforma-se e torna-se cada vez mais rápido. Os elégùn começam então a dançar, lado a lado, como numa quadrilha e seguindo, cuidadosamente o compasso marcado pela música, indo do templo de Ondó ao de Arẹ. Recuando, voltam ao ponto de partida e continuam dançando durante um bom tempo, um pouco pesadamente e em diversas direções, marcando seus movimentos com o som de sinos entrechocados. A música pára e os elégùn também. Passam a caminhar de um lado para o outro, com passos ora apressados, ora indolentes, mas sempre desajeitados e hesitantes. Eles profetizam, cantarolam e alternadamente sorriem ou ficam carrancudos; levantam as sobrancelhas, arregalam os olhos ou, com ar beato, exprimem votos aos presentes. Por fim, vão se sentar em seu lugar habitual, resignadamente, com a cabeça baixa e o queixo encostado no peito. Por instantes são agitados por tremores, mas pouco a pouco, voltam a si e retomam sua expressão e comportamentos habituais.
Para os fon do Daomé, Gun desempenha o mesmo papel que Ogun dos iorubas, mas como Odùdùa, é desconhecido em Abomey. Gun, aí, é considerado o filho de Lisa e Mawu, versão fon de Orìşàálá e Yemowo. Maximilien Quénum o compara a Lẹgba e assinala sua presença diante das forjas. Christian Merlo indica que “todos os templos têm seu Gun, cuja virtude é fortificar o vodun”.
Ogum no Novo Mundo
Ogum no Brasil é conhecido, sobretudo como deus dos guerreiros. Perdeu sua posição de protetor dos agricultores, pois os escravos, nos séculos anteriores, não possuíam interesse pessoal na abundância e na qualidade das colheitas e, sendo assim, não procuravam sua proteção neste domínio. Isso explica, igualmente, pouco a pouco que os iorubas, escravos no Brasil, deram ao Òrişà Oko, cujo culto continuou popular na África. Como deus dos caçadores, Ogum foi substituído por Oxossi, trazido à Bahia pólos africanos de Kêto, fundadores dos primeiros candomblés desta cidade.
Ogum recebe na Bahia sete nomes próximos daqueles com os quais ele é designado na África. Existem algumas variações nas listas dadas pelas pessoas interrogadas, mas os nomes mais freqüentemente mencionados parecem ser: Ogum Onirê, Ogum Akorô, Ogum Alagbedê, Ogunjá, ogum Mejê, Ogum Omini, Ogum Warí.
As pessoas consagradas a Ogum usam colares de contas de vidro azul-escuro e, algumas vezes, verde. Terça feira é o dia da semana que lhe é consagrado. Como na África ele é representado por sete instrumentos de ferro, pendurados em uma haste do mesmo metal, e por franjas de folhas de dendezeiro desfiadas, chamadas màrìwò.
Seu nome é sempre mencionado por ocasião de sacrifícios dedicados aos diversos orixás no momento em que a cabeça do animal é decepada com uma faca – da qual ele é o senhor.
É também o primeiro a ser saudado depois que Exú é despachado. Quando Ogum se manifesta no corpo em transe de seus iniciados, dança com ar marcial, agitando sua espada e procurando um adversário para golpear. É, então, saudado com gritos de “Ogum ieee!” (“Olá, Ogum!”). É sempre Ogum quem desfila na frente, “abrindo caminho” para os outros orixás, quando eles entram no barracão nos dias de festa, manifestados e vestidos com suas roupas simbólicas.
Na Bahia, Ogum foi sincretizado com Santo Antônio de Pádua. Expressamos já num capítulo precedente nossa surpresa a respeito da aproximação do deus ioruba e esse santo, geralmente representado com um ar doce a envolvente, bem como a propósito das surpreendentes honras militares que lhe foram concedidas. No Rio de Janeiro, é com São Jorge que Ogum foi associado, o que é mais compreensível, pois ele é representado em suas imagens como um valente guerreiro, vestido com uma brilhante armadura, montado em um fogoso cavalo, às curvetas, e armado com uma lança com a qual ele transpassa um dragão encolerizado.
Em Cuba, Ogum é sincretizado com São João Batista e São Pedro.
No Haiti, “a família dos Ogous engloba o conjunto dos loas nagôs, os orixás iorubas. Encontra-se aí:
“O pai e chefe dos Ogous, Papa Ogou, sincretizado com São Tiago Maior;
Ogou Ferraille, sincretizado com São Felipe;
Ogou Olisha (Obatalá) sincretizado com São Raimuido;
Ogou Balinjo (que existe na África em Dassa Zumê), sincretizando com São Tiago Menor ou São José;
Ogou Djamsan (Iansã-Oiá) e Ossange (Ossain) fazem parte da mesma família dos Ogous, mas não sabemos com que santos eles são sincretizados;
Enfim, Ogou Chango (Xangô), que, sob influência de Cuba, foi sincretizado com santa Bárbara “.
Arquétipo
O arquétipo de Ogum é o das pessoas violentas, briguentas e impulsivas, incapazes de perdoarem as ofensas de que foram vítimas. Das pessoas que perseguem energeticamente seus objetivos e não se desencorajam facilmente. Daquelas que nos momentos difíceis triunfam onde qualquer outro teria abandonado o combate e perdido toda a esperança. Das pessoas que possuem humor mutável, passando por furiosos acessos de raiva ao mais tranqüilo dos comportamentos. Finalmente, é o arquétipo das pessoas impetuosas e arrogantes, daquelas que se arriscam a melindrar os outros por uma certa falta de discrição quando lhe prestam serviços, mas que, devido à sinceridade e fraqueza de suas intenções, tornam-se difíceis de serem odiadas.

EXU ELEGBARÁ (ÈŞÙ ou ẸLẸGBÁRA)



Èşù na África

Exu é um orixá ou um ẹbọra de múltiplos e contraditórios aspectos, o que torna difícil defini-lo de maneira coerente. De caráter irascível, ele gosta de suscitar dissensões e disputas, de provocar acidentes e calamidades públicas e privadas. É astucioso, grosseiro, vaidoso, indecente, a tal ponto que os primeiros missionários, assustados com essas características, compram-no ao diabo, dele fazendo o símbolo de tudo o que é maldade, perversidade, abjeção, ódio, em oposição à bondade, à pureza, à elevação e ao amor de Deus.

Entretanto, exu possui o seu lado bom e, se ele é tratado com consideração, reage favoravelmente, mostrando-se serviçal e prestativo. Se, pelo contrário, as pessoas se esquecerem de lhe oferecerem sacrifícios e oferendas, podem esperar todas as catástrofes Exu revela-se, talvez, dessa maneira o mais humano dos orixás, nem completamente mau, nem completamente bom.

Ele tem as qualidades dos seus defeitos, pois é dinâmico e jovial, constituindo-se, assim, um orixá protetor, havendo mesmo pessoas na África que usam orgulhosamente nomes como Èşùbíyìí (“concebido por Exu”), ou (“Exu merece ser adorado”).

Como personagem histórica, Exu teria sido um dos companheiros de Odùduà, quando da sua chegada a Ifé, e chamava-se Èşù Ọbasin. Tornou-se, mais tarde, um dos assistentes de Orunmilá, que preside a adivinhação pelo sistema de Ifá. Segundo Epega, Exu tornou-se rei Kêto sob o nome de Èşù Alákétu.

É Exu que supervisiona as atividades do mercado do rei em cada cidade: o de Oyó é chamado Èşù Akẹsan.

Como orixá, diz-se que ele veio ao mundo com um porrete, chamado ọgò, que teria a propriedade de transporta-lo, em algumas horas, a centenas de quilômetros e de atrair, por um poder magnético, objetos situados a distâncias igualmente grandes.

Exu é o guardião dos templos, das casas, das cidades e das pessoas. É também ele que serve de intermediário entre os homens e os deuses. Por essa razão é que nada se faz sem ele e sem que oferendas lhe sejam feitas, antes e qualquer outro orixá, para neutralizar suas tendências a provocar mal-entendidos entre os seres humanos e em suas relações com os deuses e, até mesmo, dos deuses entre si.

Exu teve numerosas brigas com os outros orixás, nem sempre saindo vencedor. Certas lendas nos contam seus sucessos e seus reveses nas suas relações com Oxalá, ao qual fez passar alguns maus momentos, em vingança por não haver recebido certas oferendas, quando Oxalá foi enviado por Olodumaré, o deus supremo, para criar o mundo. Exu provocou-lhe uma sede tão intensa que Oxalá bebeu vinho de palma em excesso, com conseqüências desastrosas, como veremos. Teremos oportunidade, também, de ver como exu foi responsável pelos transtornos de que o mesmo Oxalá foi objeto quando certa vez foi visitar Xangô.

Por outro lado, em lendas publicadas numa outra obra, narra-se que houve uma disputa entre Exu e o Grande Orixá, para saber qual dos dois era o mais antigo e, em conseqüência, o mais respeitável. Oxalá provou sua superioridade durante um combate cheio de peripécias, ao fim do qual ele apoderou-se da cabacinha que encerra o poder de Exu e Obaluaê, foi este último que saiu igualmente vencedor.

O lado malfazejo de Exu é evidenciado nas seguintes histórias:

Uma delas, bastante conhecida e da qual existem numerosas variações, conta como ele semeou discórdia entre dois amigos que estavam trabalhando em campos vizinhos. Ele colocou um boné vermelho e um lado e branco do outro e passou ao longo de um caminho que separava os dois campos. Ao fim de alguns instantes, um dos amigos fez alusão a um homem de boné vermelho; o outro retrucou que o boné era branco e o primeiro voltou a insistir, mantendo a sua afirmação; o segundo permaneceu firme na retificação. Como ambos eram de boa fé, apegavam-se a seus pontos de vista, sustentando-os com ardor e, logo depois, com cólera. Acabaram lutando corpo a corpo e mataram-se um ao outro.

Uma outra lenda mostra Exu mais maquiavélico ainda. Ele foi procurar uma rainha abandonada já há algum tempo por seu marido e lhe disse: “Traga-me alguns fios da barba do rei e corte-os com esta faca. Eu lhe farei um amuleto que lhe trará de volta o seu marido”. Em seguida, Exu foi à casa do filho da rainha, que era o príncipe herdeiro.Este vivia numa residência situada fora dos limites do palácio do rei. O costume assim o determinava, a fim de prevenir toda tentativa de assassinato de um soberano por um príncipe impaciente por subir ao trono. “O rei vai partir para guerra”, disse-lhe ele, e pede o seu comparecimento esta noite ao palácio, acompanhada de seus guerreiros. Finalmente, Exu foi ao rei e disse-lhe: A rainha, magoada pela sua frieza, deseja mata-lo para se vingar. Cuidado, esta noite. E a noite veio. O rei deitou-se, fingiu dormir e viu, logo depois, a rainha aproximar um afaça de sua garganta. O que ela queria era cortar um fio da barba do rei, mas ele julgou que ela desejava assassiná-lo. O rei desarmou-a e ambos lutaram, fazendo grande algazarra. O príncipe, que chegava ao palácio com seus guerreiros, escutou grito nos aposentos do rei e correu para lá. Vendo o rei com a uma faca na mão, o príncipe pensou que ele queria matar sua mãe. Por seu lado, o rei, ao ver o filho penetrar nos seus aposentos, no meio da noite, armado e seguido por seus guerreiros, acreditou que eles desejavam assassina-lo. Gritou por socorro. A sua guarda acudiu e houve então uma grande luta, seguida de massacre generalizado.

Uma história mais simples mostra a atividade de Exu na vida cotidiana: uma mulher se encontra no mercado vendendo os seus produtos. Exu põe fogo na sua casa, ela corre para lá, abandonando seu negócio. A mulher chega tarde, a casa está queimada e, durante esse tempo, um ladrão levou as suas mercadorias.

Nada disso teria acontecido – nem os amigos teriam brigado, nem o rei e o príncipe teriam se massacrado, nem a vendedora teria se arruinado – se tivessem feito a Exu as oferendas e os sacrifícios usuais.

O lugar consagrado a Exu entre os iorubás é constituído de um pedaço de pedra porosa, chamada Yangi, ou por um montículo de terra grosseiramente modelado na forma humana, com olhos, nariz e boca assinalados com búzios, ou então ele é representado por uma estátua, enfeitada com fieiras de búzios, tendo em suas mãos pequenas cabaças (àdó), contendo os pós por ele utilizados em seus trabalhos. Seus cabelos são presos numa longa trança, que cai para trás e forma, em cima, uma crista para esconder a lâmina de faca que lê tem no alto do crânio. Isso, por sinal, é dito em uma de suas saudações:

“ Şinşo abè kò lóri ẹrù “

[“A lâmina (sobre a cabeça) é afiada, ele não tem (pois) cabeça para carregar fardos”.].

A Exu são oferecidos bodes e galos, pretos de preferência, e prato cozidos em azeite-de-dendê (epo), porém nunca se lhe deve oferecer o óleo branco (adi), que é extraído das amêndoas contidas nos caroços do dendê. Este àdí tem a reputação de ser “cheio de violência e de cólera”. Dizem que uma boa maneira de se vingar de um inimigo consiste em derramar sobre a estátua de Exu esse óleo, fervendo de preferência, declarando em voz alta que essa oferenda é feita pela pessoa desprezada. Exu não deixaria então de lhe pregar uma peça!

Os elégùn de Exu participam das cerimônias celebradas para os outros orixás.Alguns acompanham Xangô e traz nas costas uma tralha curiosa, onde se encontram, em desordem, duas ou três estatuetas de Exu, fieiras de búzios, pentes, espelhos e as indispensáveis cabacinhas àdó, contendo os elementos de seu poder. Outros, chamados olúpòna, participam das cerimônias que se realizam a cada quatro dias, para Ogum, na região de Holi. No decorrer de suas danças, trazem sempre na mão um ògo, bastão de forma fálica.

Exu pode fazer coisas extraordinárias que se exprime nos seus oríkí, os louvores tradicionais:

“Exu faz o erro virar acerto e o acerto virar erro”.

“É numa peneira que ele transporta o azeite que compra no mercado; e o azeite não escorre dessa estranha vasilha”.

“Ele matou um pássaro ontem, com uma pedra que somente hoje atirou. Se ele se zanga, pisa nessa pedra e ela põe-se a sangrar”.

“Aborrecido, ele senta-se na pele de uma formiga”.

“Sentado, sua cabeça bate no teto; de pé, não atinge nem mesmo a altura do fogareiro”.

Légba

Entre os fon do ex-Daomé, Èşù-Ẹlégbára tem o nome de Légba. Ele é representado por um montículo de terra em forma de homem acocorado, ornado com um falo de tamanho respeitável. Esse detalhe deu motivo a observações escandalizadas, ou divertidas, de numerosos viajantes antigos e fizeram-no passar, erradamente, pelo deus da fornicação. Esse falo ereto nada mais é do que a afirmação de seu caráter truculento, atrevido e sem-vergonha e de seu desejo de chocar o decoro.

Os Légba, guardiões dos templos de Hẹvioso, vodun do trovão, e de sapata, vodun equivalente a Sànpònná dos iorubás, manifestam-se através de légbasi, equivalentes a Olúpòna, durante as cerimônias celebradas para esse vodun. Os légbasi vestem-se com uma saia de ráfia tinturada de roxo e usam a tiracolo inúmeros colares de búzios. Debaixo da sua saia traz, disfarçado, um volumoso falo de madeira que levantam, de vez em quando, com mímicas eróticas. Além disso, têm na mão uma espécie de espanta-moscas, Roxo, semelhante a um espanador, no qual está escondido um bastão em forma de falo, que eles agitam, de maneira engraçada, na cara das pessoas presentes, particularmente sob o nariz dos turistas, pois os légbasi não deixam de observar seus sentimentos ambivalente diante dessas exibições.

Exu no Novo Mundo

No Brasil, como em Cuba, Exu foi sincretizado com o Diabo. Não inspira, porém, grande terror, pois sabe-se que, quando tratado convenientemente, ele trabalha para o bem, quer dizer, pode ser enviado para fazer mal às pessoas más ou àquelas que nos prejudicam ou, ainda, àquelas que nos causam ressentimentos.

Chamam-no, familiarmente, o “Compadre” ou o “Homem das Encruzilhadas”, pois é nesses lugares que se depositam, de preferência, as oferendas que lhe são destinadas.

Poucas pessoas lhe são abertamente consagradas em razão desse suposto sincretismo com o Diabo. A tendência, logo que ele se manifesta, é de acalma-lo, de fixa-lo, oferecendo-lhe sacrifícios e procedendo à iniciação da pessoa interessada em proveito de seu irmão Ogum, com o qual Exu divide um caráter violento e arrebatado.

O lugar consagrado a Exu é, geralmente, ao ar livre ou no interior de uma pequena choupana isolada ou, ainda, atrás da porta da casa. É simbolizado por um tridente de ferro, plantado sobre um montículo de terra e, algumas vezes, por uma imagem, igualmente de ferro, representando o Diabo Brandindo o tridente.

A segunda-feira é o dia da semana consagrado a ele. As pessoas que procuram a sua proteção usam colares de contas pretas e vermelhas. As oferendas, de animais e comida, como na áfrica, são-lhe apresentadas antes das dos outros orixás.

Diz-se na Bahia que existem vinte e um Exus, segundo uns, e apenas sete, segundo outros. Alguns dos seus nomes podem passar por apelidos, outros parecem ser letras dos cânticos ou fórmulas de louvores. Eis alguns: Exu-Elegbá ou Exu-Elegbará e seus possíveis derivados: Exu-Bará ou Exu-Ibará, Exu-Alaketo, Exu-Laalu, Exu-Jeto, Exu-Akessan, Exu-Loná, Exu-Agbô, Exu-Larôye, Exu-Inan, Exu-Odora, Exu-Tiriri.

Assinalamos anteriormente que, antes de realizar o xirê dos orixás, faz-se, na Bahia, o padê, palavra que, como vimos, significa em iorubá encontro ou reunião, durante a qual Exu é chamado, saudado, cumprimentado e enviado ao além com uma dupla intenção: convocar os outros deuses para a festa e, ao mesmo tempo, afasta-lo para que não perturbe a boa ordem da cerimônia com um dos seus golpes de mau gosto.

Arquétipo

O arquétipo de Exu é muito comum em nossa sociedade, onde proliferam pessoas com caráter ambivalente, ao mesmo tempo boas e más, porém com inclinação para a maldade, o desatino, a obscenidade, a depravação e a corrupção. Pessoas que têm a arte de inspirar confiança e dela abusar, mas que apresentam, em contrapartida, a faculdade de inteligente compreensão dos problemas dos outros e a de dar ponderados conselhos, com tanto mais zelo quanto maior a recompensa esperada. As cogitações intelectuais enganadoras e as intrigas políticas lhes convêm particularmente e são, para elas, garantias de sucesso na vida.

ORIXÁS (ÒRÌŞÀ)

ORIXÁS (ÒRÌŞÀ)

Os orixás na África

O termo “Óríşà” nos parecera outrora relativamente simples, da maneira como era definido nas obras de alguns autores que se copiaram uns aos outros sem grande discernimento, na segunda metade do século passado e nas primeiras décadas deste. Porém, estudando o assunto com mais profundidade, constatamos que sua natureza é mais complexa. Léo Frabenius é o primeiro a declarar, em 1910, que a religião dos iorubás tal como se apresenta atualmente só gradativamente tornou-se homogênea. Sua uniformidade é o resultado de adaptações e amálgamas progressivos de crenças vindas de várias direções. Atualmente, setenta anos depois, ainda não há, em todos os pontos do território chamado Iorubá, um panteão dos orixás bem hierarquizado, único e idêntico. As variações locais demonstram que certos orixás, que ocupam uma posição dominante em alguns lugares, estão totalmente ausentes em outros. O culto de Xangô, que ocupa o primeiro lugar em Oyó, é oficialmente inexistente em Ifé, on de um deus local, Oramfé, está em seu lugar com o poder do travão. Oxum, cujo culto é muito marcante na região de Ijexá, é totalmente ausente na região de Egbá. Iemanjá, que é soberana na região de Egbá, não é sequer conhecida da região de Ijexá. A posição de todos estes orixás é profundamente dependente da história da cidade onde figuram como protetores Xangô era, em vida, o terceiro rei de Oyó. Oxum, em Oxogbô, fez um pacto com Larô, o fundador da dinastia dos reis locais, e em conseqüência a água nessa região é sempre abundante. Odudua, fundador da cidade de Ifé, cujos filhos tornaram-se reis das outras cidades iorubás, conservou um caráter mais histórico e até mesmo mais político que divino. Veremos mais adiante que as pessoas encarregadas de evocar Odudua não entram em transe, o que destaca seu caráter temporal.
O lugar ocupado na organização social pelo orixá pode ser muito diferente se trata de uma cidade onde se ergue um palácio real, àáfin, ocupado por um rei, aládé, tendo direito a usar uma coroa, adé, com franjas de pérolas, ocultando-lhe a face ou onde existe um palácio, ilê Ọlójá, a casa do senhor do mercado de uma cidade cujo chefe é um balẹ`que sé tem direito a uma coroa mais modesta chamada àkòró. Nesses dois casos, o orixá contribui para reforçar o poder do rei ou do chefe. Esse orixá está praticamente à sua disposição para garantir e defender a estabilidade e a continuidade da dinastia e a proteção de seus súditos. Mas, nas aldeias independentes, onde o poder civil permaneceu fraco, na ausência do Estado (autoritário), o impacto das religiões tradicionais é muito forte na sociedade e são os chefes ‘fetichista’ que garantem a coesão social.
Alguns orixás constituem o objeto de um culto que abrange quase todo o conjunto dos territórios iorubás, como, por exemplo, Òrìşàálá, também chamado Ọbàtálá, divindade da criação, estende-se até o vizinho território do Daomé, onde Òrìşàálá torna-se Lisa, e cuja mulher Yemowo tornou-se Mawu, o “deus supremo” entre os fun, ou então Ògún, deus dos ferreiros e de todos aqueles que trabalham com o ferro, cuja importância das funções ultrapassa o quadro familiar de origem.
Algumas divindades reivindicam as mesmas atribuições em lugares diferentes Şàngó, em oyó; Ọramfè, em Ifé; Aira, em savé. São todos senhores do travão. Ògún tem competidores, guerreiros e caçadores em diversos lugares, tais como: Ija em torno de Oyó, ÒşóòŞi em Kêto, Òrẹ em Ifé, assim como Lógunéde, Ibùalámọ e Erinlè na região de Ijexá. Ọsanyìn entre os oyó desempenha o mesmo papel de curandeiro que Elésije em Ifé. Aje Şaluga em Ifé e Òsúmáré mais a oeste são divindades da riqueza.
O caso de Nana Buruku ou Brukung merece ser tratado à parte. Esta divindade representa a deusa suprema nas regiões a oeste dos países iorubás, e mesmo além, onde a influência de Ifé é menor, embora, paradoxalmente, uma parte dessas populações seja chamada Aná ou Ifè, e isso em lugares onde o culto de Òbàtálá ou Òrìşàálá é totalmente desconhecido.
Diante dessa extrema diversidade e dessas inúmeras variações de coexistência entre os orixás, fica-se descrente diante de certas concepções demasiado estruturadas.
A religião dos orixás está ligada à noção de família. A família numerosa, originária de um mesmo antepassado, que engloba os vivos e os mortos. O orixá seria, em princípio, um ancestral divizado, que, em vida, estabelecera vínculos que lhe garantiam um controle sobre certas forças da natureza, como o travão, o vento, as águas dioces ou salgadas, ou, então, assegurando-lhe a possibilidade de exercer certas atividades como a caça, o trabalho com metais ou, ainda, adquirindo o conhecimento das propriedades das plantas e de sua utilização o poder, àşẹ, do ancestral-orixá teria, após a sua morte, a faculdade de encarnar-se momentaneamente em um de seus descendentes durante um fenômeno de possessão por ele provocada.
A passagem da vida terrestre à condição de orixá desses seres excepcionais, possuidores de um àsẹ poderoso, produz-se em geral em um momento de paixão, cujas lendas conservaram a lembrança. Veremos, numa lenda, como Şàngó tornou-se o objeto dessa mutação quando um dia, exasperado por ter destruído seu palácio e todos os seus, subiu a uma colina em Igbeti, perto da antiga Oyó, e quis experimentar a eficácia de um preparado destinado a provocar o raio. Em Outra lenda, Şàngó tornou-se orixá, ou ẹbọra, em um momento de contrariedade por se sentir abandonado, quando deixou Oyó para retornar à região de Tapa. Somente sua primeira mulher, Oiá, o acompanha na fuga e, por sua vez, ela entrou para debaixo da terra depois do desaparecimento de Şàngó. Sua duas outras mulheres, Òşun e Òbà, tornaram-se rios, que têm seus nomes, quando fugiram aterrorizadas pela fulgurante cólera do marido comum. Ògún ter-se-ia tornado orixá quando compreendeu, lamentando amargamente, que acabava de massacrar, em um momento de cólera irrefletida, os habitantes da cidade de Ire, fundada por ele e que não mais a reconhecera quando ali voltou, após longa ausência. Esses antepassados divinizados não morreriam de morte natural, morte que em iorubá vem a ser o abandono do corpo, ara, pelo sopro, èmí. Possuidores de um àşe, poder em estado de energia pura.Era preciso,para que o culto pudesse ser criado, que, assim como os Mọgba de Şàngó de que trataremos mais adiante, um ou vários membros da família tivesse sido capaz de estabelecer o Odù Òrìşà, definido por O.Epega como sendo “um vaso enterrado no chão, até mais ou menos três quartos de sua altura, pelos seus adeptos”. Ele serve de recipiente ao objeto suporte da força, o àşẹ do Òrìşà. Este objeto suporte é, segundo Cossard-Binon, “a base material palpável, estabelecida pelo arixá, que receberá a oferenda e será impregnada pelo sangue do animal sacrificado. Devidamente sacrificado, será o traço de união entre os homens e a divindade”. A natureza desses objetos está ligada ao caráter do deus, quer por ser dele uma emanação como a pedra do raio, èdùn ara, de Şàngó, ou um seixo do fundo de um riacho, ọta, de Òşun, Ọya ou yemọjá, quer seja um símbolo, como as ferramentas de Ògún ou o arco e a flecha de Òsóòsì.
O orixá é uma força pura, àse imaterial que só se torna perceptível aos seres humanos incorporando-se em um deles. Esse ser escolhido pelo orixá, um de seus descendentes, é chamado seu elégùn, aquele que tem o, privilégio de ser “montado”, gùn, por ele. Torna-se o veículo que permite ao orixá voltar a terra para saudar e receber as provas de respeito de seus descendentes que o evocaram.
Os elégùn muitas vezes são chamados iyawóòrìşà (iaô), mulher do orixá. Este termo tanto se aplica aos homens quanto às mulheres e não evoca uma idéia de união ou de posse carnal, mas a de sujeição e de dependência, como antigamente as mulheres o eram aos homens.
Voltaremos, mais adiante, ao problema da iniciação desses elégùn cujo papel è fundamental nas cerimônias de adoração ao ancestral divinizado, que, incorporando-se ao elégùn, reencontra, por alguns instantes, sua antiga personalidade espiritual e material. Será novamente a personagem de outra com suas qualidades e seus defeitos, seus gostos, sua tendência, seu caráter agradável ou agressivo.
Voltando assim, momentaneamente, a terra, entre seus descentes, durante as cerimônias de evocação, os orixás dançam diante deles e com eles, recebem seus cumprimentos, “ouvem as suas queixas, aconselham, concedem graças, resolvem as suas desavenças e dão remédios para as suas dores e consolo para os seus infortúnios. O mundo celeste não está distante, nem superior, e o crente podem conversar diretamente com os deuses e aproveitar da sua benevolência”.
O tipo de relacionamento é de caráter familiar e informal. Um exemplo de uma cerimônia observada na África ilustra bem esse fato. Trata-se de uma cerimônia para um vodun daomeano, Sapata, chamado Ainon, o “senhor da Terra” , sinônimo de Şànpònná entre os iorubás, onde é igualmente de Ọbalúayé, que também significa o “Senhor da terra”. Esse culto de sapata não se afasta completamente a esse deus falam uma língua sacra que é o iorubá arcaico dos Aná ou Ifé da região de Atakpamê. Os futuros iniciados de sapata são chamados Anàgónu, os nagôs, nesse estágio de sua iniciação.
Foi em dezembro de 1969, nos arredores de Abomey, em uma fazenda chamada Tètèpa, residência do chefe de uma família relativamente numerosa, estabelecida nesse local há muitas gerações em tempo normal, a fazenda era habitada principalmente por pessoas idosas, crianças confiadas a suas avós e um número reduzido de adultos de ambos os sexos, indispensáveis aos trabalhos do campo. Em grande parte, os membros da família exerciam suas atividades em local distante, para voltarem, periodicamente, trazendo uma parte de seus ganhos para a comunidade familiar. Mas, no dia em que passamos por essa fazenda, havia muita gente para assistir e participar de uma cerimônia organizada para agradecer a Sapata Megban, protetor da família, uma graça que ele concedera nas seguintes circunstâncias.
Três ou quatro anos antes, houve um acidente ferroviário quando dois trens se engavetaram. Houve numerosos mortos e feridos. Uma mulher, pertencente à família do dono dessa fazenda, encontrava-se em um dos vagões. Estava grávida e perto de dar à luz. O medo que ela sentiu no momento do acidente fez com que a criança nascesse antes da hora. Em seu desespero, ela fez a promessa de oferecer algo de belo ao Sapata da família se a criança e ela sobrevivessem ao desastre. Saíram ilesas do acidente, e a criança desenvolveu-se normalmente. Tivemos a sorte de assistir ao pagamento da promessa.
A jovem mulher oferecia naquele dia “bela coisa” prometida. Era um belo pano um gorro bordado e oferendas de animais e alimentos. Homens e mulheres, membros da família, vieram de todas as regiões do Daomé onde trabalhavam, e até do Togo, da Costa do Marfim e da Nigéria. Sapata-Ainon, encarnado em seu vodunsi (elégùn), estava majestosamente sentado em um trono, pois era também chamado Jẹbọsu, o “Rei das Pérolas” . Todos os membros da família estavam prostrados diante dele e cantavam seus louvores tradicionais. O Vodunun, encarregado de cuidar do deus, fez um pequeno discurso para lhe agradecer por ter salvo a vida da mulher e da criança e colocou no colo do vodunsi a criança de três ou quatro anos de idade. Esta se aconchegou em seus braços como o teria feito nos braços de seu avô. Inteiramente à vontade e sem nenhum receio, a criança brincava com as franjas da roupa do deus encarnado. Essa cena nos tocou profundamente e nos pareceu muito representativa do tipo das relações entre os homens e seu deus. Um deus protetor, cujas graças são reservadas, é verdade, só ao grupo familiar. Mas estamos longe da imagem dos “feiticeiros sanguinários”, reinando pelo terror, que a literatura cristã esforçou-se em apresentar para justificar a ação evangélica dos missionários.
Orixá, ancestral divinizado, é um bem de família, transmitido pela linhagem paterna. Os chefes das grandes famílias, os balè, delegam geralmente a responsabilidade do culto ao orixá familiar, a um ou uma aláàşẹ, guardião do poder do deus, que dele cuidam ajudados pelos elégùn, que serão possuídos pelo orixá em certas circunstâncias.
As mulheres da família participam das cerimônias e podem se tornar elégùn do orixá da família paterna; mas, se forem casadas, é o orixá da família de seu marido que será o de seus filhos. Elas têm assim uma posição um pouco marginalizada na família do marido. São consideradas somente como doadores de filhos, mas não são integradas completamente em seu novo lar. Quando morrem, seu cadáver volta para a casa paterna, onde são enterradas. Mesmo em sua própria família, não têm posição estável, compatível à dos homens. Esse ponto é ilustrado pela pergunta feita pelo pai para saber qual o sexo de seu filho ao nascer: “É o dono da casa (onílé) ou a estrangeira (àléiò)?”, situando, desde sua chegada ao mundo, a posição relativa dos homens e das mulheres na família iorubá.
Conservando sua filiação ao culto do orixá familiar, pode acontecer que um indivíduo deva, por certas razões que lhe são indicadas pela adivinhação, seguir o culto a uma outra divindade, a de sua mãe, por exemplo, após a sua morte; ou de qualquer outra que lhe seja imposta em decorrência de certas situações: doenças, dificuldades na procriação de um herdeiro, defesa contra uma ameaça precisa ou imprecisa. Nesses casos, o indivíduo encontra-se implicado mais diretamente na prática desse culto pessoal.
Uma das características da religião dos orixás é seu espírito de tolerância e a ausência de todo proselitismo. Isso é compreensível e justificado pelo caráter restrito de cada um desses cultos aos membros de certas famílias. Como e por que as pessoas poderiam exigir que um estrangeiro participasse do culto, não tendo nenhuma ligação com os ancestrais em questão?
Olódùmarè, o deus supremo.
Acima dos orixás reina um deus supremo, Olódùmarè, cuja etimologia é duvidosa. É um deus distante, inacessível e indiferente às preces e ao destino dos homens. Está fora do alcance da compreensão humana. Ele criou os orixás para governarem e supervisionarem o mundo. É, pois, a eles que os homens devem dirigir suas preces e fazer oferendas. Olódùmarè, no entanto, aceita julgar as desavenças que possam surgir entre os orixás.
Essa definição parece ser uma tentativa de elaboração de um sistema que centraliza o que era diverso e harmoniza o que era incompatível entre orixás vindos de horizontes muito diferentes, como sugere Léo Frobenius. Apesar de sua posição de sua posição muito exaltada, Olódùmarè não conseguiu, entretanto, resolver o conflito surgido entre Ọbalúayé e Nana Buruku de um lado e Ògún, do outro. A esse respeito, falaremos mais adiante.
Admitindo o papel de deus supremo atribuído a Olódùmarè e se pairarmos acima das sutilezas locais, evitando fazer alusão às incoerências que resultam da pluralidade dos orixás, todos igualmente poderosos, parece que poderemos elaborar um sistema em que cada orixá torna-se um arquétipo de atividade, de profissão, de função, complementar uns aos outros, e que representam o conjunto das forças que regem o mundo. É o que exprime algumas histórias de Ifá, que os babalaôs, como as que se referem ao que já foi dito acima : “Os orixás e os ẹbọrạ são os intermediários entre Olódùmarè e os seres humanos e receberam, por delegação, alguns de seus poderes”.
Em um tal sistema, os orixás, mais comumente chamados ìmọlẹ pelo Rev. D. Onadele Epega, teriam sido divididos em dois grupos: “ Duzentos ìmólè da direita, igba ìmòlè, e quatrocentos da esquerda, Irún ìmólè”. Uma Fórmula de saudação ritual sobre a qual pouco se sabe e que é ainda pronunciada, no Brasil, pelos descendentes dos iorubás, que vivem, sem outra explicação a não ser que, outrora, entre os iorubás, o primeiro algarismo significasse um grande número e o segundo, um grandíssimo número.
Olódùmarè mora no além, Òrun, traduzido geralmente por “céu”. Mas há ai, sem dúvida alguma, incompreensão por parte dos pesquisadores, todos formados com a idéia de que Deus mora no céu. Em outro trabalho, mostramos que, entre 1845 e 1962, dos dezoito autores principais que abordaram o problema do deus supremo entre os iorubás, treze eram missionários católicos e protestante e só dois eram antropólogos, sendo os outros três um cônsul, um tenente-coronel e um alto funcionário da administração colonial, todos de nacionalidade britânica.
Quase todos esses pesquisadores dão Ọlóòrun, dono do céu, como primeiro nome ao deus supremo dos iorubás e Olódùmarè, como segundo.
Nessa pesquisa da definição do deus supremo, como em muitas outras sobre o assunto, cria-se geralmente uma situação inoportuna entre o pesquisador e a pessoa interrogada. Esta última pega rapidamente o sentido do pensamento do primeiro e, benevolamente, dá respostas que se ajustam à hipótese da pesquisa. Mesmo se o informante não alterar voluntariamente os fatos, tentará ao menos exprimir-se em termos compreensíveis ao seu interlocutor, resultado daí grande satisfação para este último e enorme prejuízo para a verdade. Um desses pesquisadores, o Padre Bouche, já reconhecia, entre4 1866 e 1875, que “os intérpretes negros preocupam-se menos com a exatidão do que com o fato de não descontentarem o branco, e não deixam de lisonjeá-lo pelas interpretações que sabem ser de seu agrado ou pelo menos existentes em suas idéias”.
Três desses pesquisadores, de origem iorubá fazem exceção a essas observações:
Onadele Epega, que em seu livro nunca emprega a palavra “ Ọlódùmarè ao deus supremo e acentua que “Ọlóòrun é o nome utilizado pelos cristãos e pelos mulçumanos para seus trabalhos de conversão dos infiéis”.
O Reverendo Padre Moulero, o primeiro nagô a ser ordenado padre no Daomé, chegou a escrever que “as populações neste país só acreditavam nos ídolos e não conheciam a Deus, mas é preciso fazer uma exceção em favor dos nagôs, que sob influência dos muçulmanos, adquiriram (antes da chegada dos missionários católicos) um conhecimento de Deus que se aproxima da noção filosófica cristã”.
Para definir Olódùmarè, os “pais do segredo”, nome dado aos adivinhos, dos quais falarem mais adiante.
Algumas tradições pretendem que Òrun não esteja situado no céu, mas debaixo da terra. Há, efetivamente, em Ifé um lugar chamado Òrun Ọba Adó, onde haveria “dois poços sem fundo que os antigos diziam ser o caminho mais curto para o além”.
Este Òrun é o além, o infinito, o longínquo, em oposição ao ayé, o período de vida, o mundo, o aqui, o concreto.
É no Òrun que habitam os montes, os ará Òrun, que voltam periodicamente ao mundo, ayé, para se tornarem novamente seres vivos, ará ayé. “Esses além assemelhar-se a terra, porém triste e lúgubre”. As almas apressar-se-iam em voltar para a terra, para a mesma família, da qual alguns membros usam o nome de Babatúndé ou o de Iyátúndé, o que significa “o pai ou a mãe voltou”. Estamos longe do céu paradisíaco e macio dos cristãos e muçulmanos.
Os próprios deuses não parecem felizes em seu desterro no Òrun-além, e durante as cerimônias realizadas em seu louvor apressam-se em volta as terras, encarnando-se nos corpos em transe de seus descendentes que lhes são consagrados.
A idéia de que Òrunalém está situado embaixo da terra é comprovada durante as oferendas aos orixás, quando o sangue dos animais sacrificados é derramado no ajúbọ, um buraco cavado na terra, em frente ao local consagrado ao deus, e os olhares se voltam para o chão e não para o céu.