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terça-feira, 1 de setembro de 2009

Lina, a curandeira: feitiçaria, cultura e poder na Feira de antigamente


Não se surpreendam os leitores se já tiverem lido este texto ou, pelo menos, parte dele em algum outro lugar. Pois o que apresento, nessa edição de “História vista de baixo”, é uma versão rapidamente melhorada de um pequeno ensaio que publiquei no site da Fundação Cultural Palmares.

Na verdade, para que não cresça mais o mentiroso que existe em mim, devo confessar que este texto é um resumo do trabalho publicado nos Anais do II Seminário de Estudos Filológicos: Filologia e História (Editora Quarteto, 2007).

Para além das desonestidades autorais, correndo ainda o risco de está cometendo o crime de auto-plágio, espero que o leitor se deleite com a abordagem sobre um outro crime, mais ainda, sua relação com cultura e poder, na perspectiva da história vista de baixo na Feira de antigamente.


Em 1905, a justiça feirense instaurou um inquérito policial para investigar o assassinato de quatro pessoas em festa de candomblé, a principal acusada era conhecida por suas práticas de curar pelos chamados saberes tradicionais, ou seja, era uma notória curandeira.


A ação judiciária fundamentava sua acusação no artigo 158 do Código Penal de 1890, o qual tratava do crime contra a saúde pública: neste caso a prática de cura vinculada aos saberes mágicos ancestrais afro-religioso era criminalizada.

O caso ocorreu no atual município de Anguera, na época denominado Almas, distrito de Feira de Santana. Ainda no calor da instalação do regime republicano no interior da Bahia, um crime “bárbaro” ocorreu em agosto de 1904.

O que parecia ser uma simples celebração em um terreiro de candomblé, localizado no distrito de Almas, atual município de Anguera, passou a um grande problema para a curandeira Maria Carolina da Cruz, conhecida por Lina. Depois de um estranho desentendimento entre alguns participantes da festa, se desenrolou um conflito corporal entre os mesmos atingindo o fatal índice de quatro mortos. Lina foi responsabilizada pelas mortes, acusada de ter ministrado suas conhecidas “beberagens”.


Para uma primeira vista este seria um caso isolado na pacata e bem quista urbe de Feira de Santana. Entretanto, não se tratava de um simples crime como outros que ocorriam. Era uma chacina que preocupava as autoridades e que não deveria ser tolerada pelo espírito republicano: quatro mortes em um terreiro de candomblé que funcionava na residência de uma das vítimas de nome João Evangelista Pires; e o mais agravante: a suspeita era reincidente e o caso era considerado mais um crime promovido pela prática “bárbara” do curandeirismo e da feitiçaria, conseqüente da ingestão de suas beberagens.

Essa é a versão explicitada nas peças dos Autos correspondentes ao processo movido pela justiça feirense contra Lina, a curandeira. Este caso, que pode ser acompanhado tanto pelo processo crime quanto pelo artigo intitulado “No rol dos culpados: poder e criminalização do candomblé em Feira de Santa Anna”, publicado nos citados Anais do II Seminário de Filologia, evidencia a criminalização das práticas de candomblé, na região de Feira de Santana, como conseqüência da repressão aos saberes de cura denominado curandeirismo, no início do século XX, um importante capítulo da história da saúde pública na Bahia.

A partir de casos como este parece ter a polícia feirense desenvolvido uma campanha sistemática de repressão ao candomblé sob o jugo da perseguição às práticas de cura vinculadas aos saberes mágicos de caráter afro-religioso, citados na então legislação penal como crimes contra a saúde pública, em seu artigo 158.

Curandeiro, feiticeiro ou outro adjetivo que faça referência aos saberes mágicos de matrizes africanas, vinculados às práticas afro-religiosas, deixou muitas pistas em Feira de Santana. A maior parte dos processos criminais, identificados nos arquivos feirenses, movidos contra curandeiros identifica a prática de candomblé.


Em alguns destes o réu é indiciado apenas por bater candomblé sem a autorização do delegado de polícia. Há, então, um elemento importante a ser considerado no tocante à característica das práticas de repressão policial aos adeptos do culto afro-brasileiro em Feira de Santana, constatado inclusive no caso de Lina: as prisões não eram realizadas unicamente por bater candomblé, mas principalmente por exercerem os saberes mágicos afro-brasileiros identificados como “feitiçaria”, “magia negra” e “curandeirismo”. O candomblé era apenas um elemento agravante, o contraponto do saber médico-legal.


É consenso entre muitos estudiosos que a preocupação das elites locais com os saberes mágicos de cura, ou seja, com as práticas do curandeirismo remetem ao período colonial e, no caso de Feira de Santana, existem registros para o século XIX.


Rollie Poppino, por exemplo, em seu livro intitulado Feira de Santana (Editora Itapoã, 1968) informa para seus leitores que apesar da perseguição sofrida pelos curandeiros, por parte da classe médica e dos poderes públicos, a prática do curandeirismo continuou nas zonas rurais do município em todo período contemplado por sua pesquisa, a saber: de 1860 a 1950. Infelizmente, por se tratar de uma nota de roda-pé, o autor não forneceu mais informações a esse respeito, quem sabe ajudaria a entender melhor o que aconteceu naquele candomblé, em agosto de 1904.
Lina, a curandeira, foi protagonista de uma história que, como muitas outras, não se revelou na grande narrativa dos acontecimentos históricos que compõe a epopéia feirense. Agora se apresenta como importante capítulo da história da saúde pública e das práticas afro-religiosas na cidade Princesa, uma história vista de baixo da Feira de antigamente.

Para saber mais:


BRAGA, Júlio. Na gamela do feitiço: repressão e resistência nos candomblés da Bahia. Salvador: Edufba, 1995.

OLIVEIRA, Josivaldo Pires. “No rol dos culpados: poder e criminalização do candomblé em Feira de Santa Anna”. In: QUEIROZ, Rita (org). Anais do II Seminário de Estudos Filológicos: Filologia e História. Feira de Santana: UEFS/Salvador: Quarteto, 2007.

Bel Pires é profissional do magistério superior em Feira de Santana e Coordena o Malungo Centro de Capoeira Angola, entidade que desenvolve intercâmbio cultural com Belém, no Estado do Pará - belpires1@ig.com.br

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Malungo Centro de Capoeira Angola
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Fonte:
http://www.fsonline.com.br