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domingo, 26 de setembro de 2010

História do Zô Ogodô Bogum Male Seja Hundê ou Roça do Ventura

O SEJA HUNDÊ

O Zoogodô Bogum Malê Seja Hundê está localizado no limite da cidade com o Iguape, a zona açucareira de Cachoeira, distante dela 4 quilômetros. Essa localidade é conhecida como Lagoa Encantada, antes denominada Lagoa Faleira, no limite da extensa rua Benjamim Constant, antes denominada Ladeira que sobe para Belém, Estrada dos Carmelitas e Ladeira da Cadeia. Trata-se, em verdade, da porção central que compreende o platô que circunda a cidade de Cachoeira, que tem inicio no extremo norte da cidade (Três Riachos, Capapina, Bitedô) e confina no extremo sul (Caquende e Tororó).
Na proximidade do terreiro encontram-se os antigos engenhos Rosário, Conceição, São Carlos do Navarro (Tororó) e Vitória. Esses engenhos, assentados no limite de Cachoeira com o Iguape, eram contíguos aos mais importantes engenhos dessa zona, porque pertenciam aos mais ricos senhores de engenhos durante o século XIX. Os engenhos Vitória, Conceição e São Carlos do Navarro, por exemplo, pertenciam respectivamente ao comendador Pedro Rodrigues Bandeira e ao comendador Manoel Jacinto Navarro de Campos. Além disso, esses engenhos eram contíguos a outros importantes engenhos, dos quais alguns se tornaram célebres por ter sido palco de rebeliões escravas que ocorreram no Recôncavo baiano durante a primeira metade do século XIX. O Engenho Conceição limitava-se ao norte com o engenho São Carlos do Navarro; a oeste, com o Rio Paraguaçu; a sul, com o Engenho Vitória e, do engenho Vitória, com a Terra Vermelha ou Guaíba. O engenho Rosário limitava-se ao norte com terras de Bernardo Mendes da Costa, que era o mais importante traficante de escravos de Cachoeira durante a primeira metade do século XIX ; a leste com o engenho Desterro; a sul com a Faleira (na proximidade do Bitedô) e fazenda Campinas (pertencente ao já citado comendador Pedro Rodrigues Bandeira) e a oeste, com o Zôogodô Bogum Malê Seja Hundê .
O acesso ao Seja Hundê pode ser feito pela zona do Iguape na imediação do povoado de Pedrinhas, na Terra Vermelha, através de uma localidade denominada Malaquia. Porém o acesso mais fácil é através da citada ladeira da Cadeia ou pela lagoa Encantada até a entrada da Fazenda Altamira. Através de um caminho por essa fazenda, uma porteira recentemente instalada ao lado de uma centenária jaqueira demarca o limite entre a Roça de Ventura, como é conhecido também o Seja Hundê. Daí, a poucos metros dessa demarcação uma pequena cerca arredondada, de 50 centímetros de diâmetro por 50 centímetros de altura, representando Ogum Xoroquê (Ogum Tolu) tem início a área de culto do candomblé.
Depois de descer uma ladeira, observam-se algumas árvores sacralizadas, denominadas atins, destacando-se, no centro do terreiro, um cactus, que representa a divindade Aïzan. Em meio a outros atins ficam duas pequenas casas, que são o sabaji, onde ocorrem os ritos fundamentais do terreiro, e ao lado, o abacá, onde ocorrem as festas públicas. Em frente a essas duas casas, duas cajazeiras centenárias representam os atins de Legbara (Exu) e Bessém, a cobra píton, a divindade principal cultuada no terreiro. No fundo do sabaji encontra-se o dangbé, um montículo cônico revestido de pedaços de cerâmicas azuladas, onde ocorrem os ritos públicos mais importantes dedicados a Bessém.
Não existe um acordo quanto a origem do Zôogodô Bogum Malê Seja Hundê. A data de sua fundação também não é definida com precisão. As fontes de informação sobre a origem desse terreiro são seus membros antigos e as versões variam de uma para outra. Uma dessas versões diz que ele é oriundo do Bitedô, e que teria sido transferido por volta de 1870 para a Faleira, na proximidade da lagoa Encantada, em terras compradas por Zé de Brechó. Outra versão diz que ele é oriundo de uma associação de Zé de Brechó com uma africana chamada Ludovina Pessoa, responsável também pela formalização do Bogum de Salvador, não mencionando sua ligação com o Bitedô, e sim com escravos do vizinho engenho Rosário.
Relatos orais revelam que na sua proximidade e a menos de 5 km da zona urbana de Cachoeira existiria um quilombo denominado Malaquia, ou Malaquias, e que africanos desse quilombo foram os mesmos que fundaram esse candomblé. Malaquia é uma gleba de terras localizada entre o antigo engenho Rosário e o povoado de Tabuleiro (do engenho) da Vitória. Chega-se a esse lugar através do povoado de Pedrinhas (também denominado Quebra Bunda), pela zona do Caquende, ou então pelo engenho Rosário.
O acesso e a localização do lugar são difíceis. Depois da caminhar por vegetação áspera, a referência do lugar é um braço do riacho Caquende que cursa por entre rochas. Nessas rochas, o que chama a atenção são sulcos, que parecem desenhos feitos por constantes atos de afiar instrumentos cortantes, tipo foices, facões, etc. Os moradores do povoado de Pedrinhas dizem que aqueles desenhos foram feitos por índios que moravam ali.
Tomando as devidas precauções para não criar estereótipos, podemos afirmar que, além dos relatos orais, evidência concreta da existência de um possível quilombo nessa localidade é uma escritura datada de 28 de junho de 1838, na qual Francisco Garcia de Aragão vendia a seu sobrinho, Manoel Garcia do Nascimento Souza Aragão, cento e vinte e cinco braças de terras denominadas Quilombo, “que as houve por herança de seos finados paes que principia por onde corre o rumo do escapellado da Engenhoca, e vae findar nas terras do engenho Rosário” . O que podemos garantir é que o provável quilombo de Malaquia está exatamente localizado na parte que confina a fazenda Quilombo de Francisco Garcia de Aragão.
As informações em torno desse suposto quilombo são, evidentemente, orais. Os relatos são de que no quilombo de Malaquia a Irmandade da Boa Morte esconderia africanas fugidas, que permaneciam ali até a compra de sua liberdade. O lugar exato de sua localização se presta a muita confusão, de sorte que em algumas narrativas o quilombo de Malaquia é identificado como o morro Capapina ou o Bitedô.
Segundo informação de Ambrósio Bispo Conceição, por volta de 1840-50, havia no Bitedô um candomblé liderado por um africano chamado Quixareme. Esse candomblé reunia um significativo número de africanos no mês de outubro para prestar homenagem à divindade Azonsur. Segundo José Maria da Silva, conhecido como Zé de Abalha, Quixareme era escravo de Jacomim Vaccarezza, proprietário, a partir de 1870, do antigo engenho Pitanga, contíguo ao Bitedô . A versão de Aurelino Moreira é de que esse culto era realizado “no Malaquia e que por muito tempo o povo do Seja Hundê fazia uma obrigação lá”. Membros mais antigos desse candomblé são unânimes em afirmar que a fundação do candomblé em referência inclui a pessoa de Quixareme e que de fato a área da roça era maior e que algumas obrigações rituais eram realizadas em lugar afastado do terreiro, sem especificar, contudo, o Malaquia .
A versão do antropólogo Luís Nicolau Parés é de que o terreiro foi fundado por Tixareme que posteriormente se associou a Ludovina Pessoa, vendo nessa associação uma relação tipicamente africana de co-responsabilidade religiosa de um homem e uma mulher na liderança de um templo de vodum praticada no Benim . Quanto a Zé de Brechó nesse processo, o mencionado autor sugere que ele deve ter sido aquele que garantiu a continuidade do terreiro fundado por Tixareme, quando comprou o sítio em 1882.
A minha versão é a de que Quixareme, ou Tixareme, é uma personagem inexistente. A forma como o nome é grafado nos documentos referente ao sítio onde hipoteticamente residiu Tixareme, cujo nome deu nome à propriedade - Cherene, Chareme, Cherema - sugere que trata-se de repetições de um erro de grafia inicial. A substituição do nome Quixareme, pronunciado pelos membros do Seja Hundê, para Tixareme parece ser também uma forma de legitimá-lo como um nome próprio originário dos povos gbe-falantes.
Em uma escritura pública de compra e venda datada de 1912, que faz Zacharias da Nova Milhazes da fazenda Altamira, a denominação que tomou o referido sítio, por exemplo, aparece grafado “sítio do Charem”, um termo próximo e alusivo a uma iguaria elaborada com milhos . Outra evidência da inexistência da pessoa Tixareme é que durante a cerimônia noturna feita sob o atim de Aïzan no Boitá por mim presenciada em 2003 no Seja Hundê, em que o ogan pronuncia o nome dos membros falecidos do terreiro, percebi que o nome de Ludovina Pessoa, Zé de Brechó e mesmo de Seu Ventura foram pronunciados, com exceção o de Tixareme. Ademais, o nome Tixareme e Quixareme existe apenas no âmbito de um restrito número de pessoas do Seja Hundê (Boboso e Zé de Abalha), sendo um nome desconhecido do povo de santo cachoeirano, inclusive Gaiaku Luísa. Já o Bitedô é um nome recorrente e reconhecido como o lugar onde existiu, com expressivo exagero e ufanismo, “o primeiro candomblé do Brasil”, sendo o local onde preferencialmente os terreiros de candomblé local depositam objetos oriundos de rituais fúnebres (axexê) do povo de santo.
A construção desta intricada teia sobre a formação histórica do Seja Hundê foram baseadas por mim e Parés principalmente nas informações de Boboso. Mas é preciso advertir e levar em consideração que ao discorrer sobre aspectos fundamentais desse terreiro, Boboso (e os demais membros desse terreiro) é muito reticencial e digressivo, fazendo com que seja preciso que o entrevistador realize um meticuloso trabalho de interpretação e transcriação verbal.
Permita-me um exemplo o leitor. Em uma dada ocasião, comentando com Boboso sobre o abandono em que se encontrava o Cemitério de Africanos da Irmandade dos Nagôs, da qual ele é irmão, e o meu desejo em ajudar na sua conservação, ele me contou uma história, que aqui transcrevo. Ele me disse que, “certa feita”, ele e seus irmãos de santo foram colocar uma oferenda para um falecido “baluarte do jeje” na porta desse cemitério. Entre eles tinha um ogan “metido a filósofo”. Ao chegar à porta do cemitério, alta madrugada, na hora de “arriar” a oferenda o ogan filósofo se antecipou aos demais e gritou: “Fulano de Tal, seu filho de uma puta, toma aqui o que é seu!”. “Nesse momento”, ele disse: “você já viu uma ruma de pedras de dominó em pé e enfileiradas, que quando você derruba a primeira caem todas? Foi assim. E aí...Mãe! Mãe!...”.
Quero com este exemplo dizer que essa narrativa apresenta significativos elementos metafóricos. Aparentemente Boboso desviou o assunto que eu tratava inicialmente com ele, a de me oferecer para limpar o cemitério. No entanto, ele quis dizer que eu, para ele um também “metido a filósofo” e sem o preparo de seu irmão de santo, não me envolvesse com o Cemitério de Africanos porque ali era um lugar perigoso, que para fazer o que pretendia, eu precisaria estar preparado”. Nessa narrativa ele fala de uma oferenda a egum, espírito ancestral, do seu irmão de santo que agia desrespeitosa e desdenhosamente com as forças espirituais, da reação do egum, que todos caíram e em seguida saíram correndo, que assombrados comunicaram à sua mãe de santo e, por fim, da ineficácia da oferenda devido o ocorrido.
Neste sentido, e voltando ao assunto, quando lhe perguntei, em 1989, sobre a fundação do Seja Hundê, ele me respondeu que “-Desde quando havia Obitedô aqui na Cachoeira, onde existe aquela jaqueira...Eu não conheci; conheci quando era já lá embaixo...” Perguntei-lhe em seguida o que era Obitedô, e ele respondeu: “-Você não conhece? Ali embaixo do túnel, na ponte. Era ali embaixo, mais acima, onde tinha as cajás. Hoje só tem bambus...Ali viviam as altas personalidades: Zé de Brechó, Salacó, Quixareme” . Quando Boboso diz, referindo-se ao Bitedô, “ali naquela jaqueira”, “conheci lá embaixo”, ele faz referência deslocada da Roça de Cima, que ele não conheceu, e da Roça de Ventura (lá embaixo), que ele conhece. Já “Ali embaixo...No túnel”, etc, ele finalmente localiza o Bitedô.
Infere-se daí que Boboso confunde, mas pretende dizer que o Bitedô e o sitio Chareme foram lugares onde Zé de Brechó manteve um terreiro de candomblé, sendo o Bitedô em um tempo anterior a 1860 e o sitio Chareme após essa data e com a associação de Ludovina Pessoa. Com efeito, interpretando e transcriando essa narrativa, a minha versão sobre a formação do Seja Hundê é a de que ele é oriundo do culto realizado até a primeira metade do século XIX nas terras do Bitedô que, como já fiz referência, pertenciam ao pai de Zé de Brechó. E que, com a construção de um túnel e um viaduto ferroviário nesse lugar, concluído em 1870 , esse culto foi desfeito e reaberto por volta de 1880 em terras compradas por Zé de Brechó a José Gonsalo Martins de Oliveira, entre a Faleira e a vizinhança do engenho Rosário, no limite da cidade de Cachoeira com a zona rural do Iguape, dando origem à Roça de Cima.
Permita-me aqui o leitor transcrever, na íntegra, a divisão das terras onde estava inicialmente localizado esse terreiro porque será importante para os argumentos que se seguem. Apoio-me na escritura pública de compra e venda, de 1912, que me referi acima. Como assinalei, trata-se de uma transação de venda e compra realizada entre Zacharias da Nova Milhazes, em nome de suas filhas menores, e Dr. Moyses Elpídio de Almeida, que comprou o referido sítio para seus três filhos, também menores. Em 1912 o sítio era composto, segundo a escritura pública, “de dois pedaços de terras contíguos no lugar denominado Faleira, do lado direito da estrada [dos Carmelitas ou ladeira da Cadeia] que segue desta cidade para o arraial de Belem”.
Consta que possuía uma boa casa de morada, construída recentemente, diversas outras benfeitorias, inclusive árvore frutíferas, “dividindo-se o primeiro pedaço de terras que teve a denominação de sítio do Charem, a frente com a estrada que vai de Belem, lado de cima com o marco de pedra, em linha reta até a porteira do Ventura”. Na porteira do Ventura está a referida jaqueira que Parés acredita ser o atim de Dada Zodji . Dela, voltando para o lado direito “em procura da cerca do mesmo sítio, descendo com volta e revolta em procura do rio Caquende, descendo até os bambus, subindo em linha dividindo com a fazenda denominada Boa Vista, pertencente a D. Amélia Sampaio, fazendo rumo nos três irmãos, que são três árvores bastantes altas, seguindo até a Lagoa, esbarrando aí com as terras da viúva de Melchiades”.
Nessa demarcação, o documento revela um dado muito importante. Observa-se que em linha reta até a porteira do Ventura, voltando para o lado direito, ou seja, para a cerca divisória das duas propriedades, e chegando ao rio Caquende, onde essas propriedades limitam-se com a fazenda Boa Vista, depara-se com os três irmãos. Os três irmãos em referência são os atins da antiga Roça de Cima consagrados a Bessém Seja Hundê, Azonsur Dandagoji e Sogbo, que os adeptos desse terreiro chamam de o príncipe (Bessém), o rei (Sogbo) e o conde (Azonsur), ou os três reis magos, Belchior, Balthazar e Gaspar. Nesse caso, a jaqueira que está localizada na porteira da Roça de Ventura não corresponde ao local onde estão os três irmãos.
Vê-se daí que a antiga Roça de Cima não estava exatamente onde a tradição oral e os membros do Seja Hundê acreditam tenha sido a sua localização, embora não seja descartado que essa localidade não tenha sido também espaço de culto, principalmente na Lagoa, que ainda encontra-se preservada. Pelo menos entre 1902 e 1912 não há indício da existência de edifícios no local, a não ser o construído por Zacharias Milhares. Não possuo informação a respeito de moradores na fazenda Altamira no tempo de Zé de Brechó. Identifiquei um morador chamado José Boaventura, 45 anos, preto, roceiro, natural de Belém, falecido em 1935 . Na fazenda Boa Vista, no entanto, encontrei, em 1895, um tal Manoel Savalu, natural de Tanquinho, na época um povoado de Feira de Santana.
Essas terras tinham a denominação de sítio Chareme, ou Cherene, na grafia dos primeiros documentos de escritura pública e mais tarde incluiria a fazenda Boa Vista, também pertencente a Zé de Brechó. Nesse momento, Zé de Brechó associa-se a Ludovina Pessoa, que provavelmente era pessoa ligada por afinidade religiosa à sua família e a outras mulheres africanas e crioulas moradoras de Cachoeira adeptas ao culto de voduns e à devoção à morte e assunção de Maria, que organizaram a Irmandade de Nossa Senhora da Boa Morte.
Defendo a tese também de que em vez de Quixareme ou Tixareme, o culto a Azonsur do Bitedô era liderado por José Ricardo, o citado amigo e tutor dos filhos de Belchior Rodrigues Moura. Como já me referi, José Ricardo foi provavelmente o mesmo Talabi fundador do terreiro Oxumarê de Salvador e, na condição de sacerdote com influência em Cachoeira e Salvador, foi o agenciador de relações de sociabilidades que ligaram sacerdotes e sacerdotisas cachoeiranos e soteropolitanos na formação do Seja Hundê, como na estruturação e consolidação da Irmandade da Boa Morte em Cachoeira.
Provavelmente os fundamentos da Roça de Cima estavam na outra parte do sítio Charem, conhecida como Boa Vista, onde Zé de Brechó faleceu. Boa Vista, na verdade, era um sítio cujas terras pertenciam em 1858 ao engenho Rosário. Nessa época ele era foreiro a Faustino José Belieiro e dividia-se “pelo fundo com o sítio de Antonio [o sítio Charem], ao sul, e pelos outros lados divide-se com as terras do mesmo engenho”.
Boa vista, no entanto, pode ser considerada uma localidade rural mais extensa e incluída no morgado de Luiz Pinto da Silveira, “cuja sorte de terras se divide pelo lado do sul com terras do doutor Manoel Jacinto Navarro de Brito, dos lados do nascente e poente com terras do mesmo morgado, e do lado do norte com terras de Antonio Vieira de Souza” . Essa demarcação tinha início no Caquende, na porção sul da cidade de Cachoeira, e se estendia até o início da Faleira, engenho Rosário, engenho Desterro, engenho São Carlos do Navarro e Malaquia. Nesse caso, tanto sítio Charem, como os sítios Ventura e Pastorador, que eram contíguos, foram fragmentações da fazenda Boa Vista.
Esse pedaço “segue pelo lado da estrada que vai para Belem, da casa do Dórea [antigo proprietário do engenho Rosário], pelo fundo desta em linha reta até o rio Caquende e daí margeando o dito rio até os bambus e deste subindo até o lugar denominado Ventura onde existe uma fonte [dedicada a Oxum, atualmente desativada] nos terrenos do segundo pedaço, seguindo desta fonte até dividir com as terras pertencentes ao sítio que foi de Manoel Nunes Barreto [onde está o suposto atim de Dada Zodji e início do sítio Pastorador] e destes até encontrar a estrada que vai para Belem, ficando nesta divisão o caminho que vai para o engenho Rosário”. .
Segundo a tradição oral, Zé de Brechó era nagô, mas um profundo conhecedor da tradição jeje, por isso seu título de Runhó. Em caso de uma provável existência da pessoa de Tixareme, este cultuava a divindade Azonsur que, segundo Parés, em sua obra citada, era uma divindade largamente cultuada com a denominação de Sakpata, Obaluaiyê, Azoano e Omolu em um vasto território africano jeje e nagô. Já Ludovina Pessoa, segundo a tradição e informações orais, era de Ogum Rainha que exercia a função de Doné, uma cultuadora de Dã/Bessém.
Baseado nessas informações controvertidas, alguns membros do Seja Hundê me informaram que a Roça de Cima era jeje mudubi, a mesma “nação” do Humpaime Dahoméa de Nagé, por causa de Azonsur. Ogan Boboso diz também que a Roça de Cima era da “nação” mudubi, mas com a chegada de Ludovina passou a ser jeje marrin . Esses dados, entre outros, são relatados como os que provocaram a transferência conflituosa do terreiro da Roça de Cima para a Roça de Ventura. No entanto, ogan Boboso diz que os dois “terreiros” funcionaram juntos em algum momento e que o Boitá era feito na Roça de Cima e descia para a Roça de Ventura, etc. Parece que houve uma transferência acordada e programada.
Isto ocorreu por volta de 1900, quando o Seja Hundê já funcionava na Roça de Ventura, mas suas terras não pertenciam ao terreiro. No registro de terras de Cachoeira, datado de 1858, elas pertenciam a Manoel Ventura Esteves, que não parece ter sido membro do terreiro, embora a tradição oral afirme que sim. Parece que a Roça de Ventura não era beneficiada com alguma atividade agrícola ou criação de animais devido condições irregulares do terreno, sendo cedida pelo seu proprietário, talvez um parente de Ventura Esteves, para as práticas religiosas do terreiro.
A aquisição definitiva das terras deu-se como uma barganha no âmbito da negociação de compra do engenho Rosário que foram readquiridas por José Albino Milhazes Filho, um ano depois de sua mãe, Sylvia Milhazes, esposa do comendador português Albino José Milhazes, ter vendido à Companhia Francisco José Cardozo & Silva , e na negociação de seu primo e inimigo, Zacharias Milhazes, que comprou dois anos mais tarde as terras do sítio do Charem, “contendo 42 hectares”, em mãos das irmãs de Zé de Brechó.
Foi nesse momento que o sítio Charem recebeu a denominação de fazenda Altamira e a roça de Ventura foi formalmente comprada em nome de Maria Luíza do Sacramento, em cuja negociação intercederam, financeiramente, Albino José Milhazes Filho, Zacharias, da Nova Milhazes, Aniceta Belchior e outras pessoas influentes.
A primeira gaiaku do Seja Hundê, na Roça de Ventura, foi Maria Luíza do Sacramento, conhecida como Maria Ogorinsi, cujo hierônimo era Ogorinsi Missimi. Isto significa dizer que a participação de Ludovina Pessoa restringiu-se unicamente em formalizar a fundação do terreiro na Roça de Cima (no Charem) e não constituiu-se uma líder espiritual que mantivesse uma gestão exclusiva, digamos, à frente do terreiro. Maria Ogorinsi era crioula e natural de Nagé, em Maragogipe. No registro de seu óbito, feito por Aristides Gomes da Conceição, seu ogan e colaborador, consta que ela era maior de 80 anos, filiação desconhecida, sepultada em carneira da Irmandade dos Martírios . Assim sendo, Maria Ogorinsi nasceu em 1842, talvez de pais jejes, esses provavelmente ligados à fazenda de Matta Pinto e ao terreiro Humpame Dahoméa.
Antes de 1896, quando tornou-se gaiaku do Seja Hundê, Ogorinsi residia na rua do Bilhar, em frente ao cais de embarque e desembarque do vapor, em uma zona central da cidade de Cachoeira denominada Beco das Ganhadeiras. Depois residiu, até seu falecimento, na ladeira da Praça (ladeira da Cadeia). Em Cachoeira residia também seu irmão, conhecido como Novice, que residia no Seja Hundê. Novice parece ter sido o pai de Luiz Gonzaga do Sacramento, nascido em Maragogipe e falecido em Cachoeira com 81 anos em 1966.
Desconhece-se o nome das vodunsis da Roça de Cima, além de Maria Ogorinsi e Sinhá Abalha. Já os ogans, figuram os nomes de Miguel Rodrigues da Rocha, ou Miguel Franklin da Rocha, que era o pejigã do terreiro, e Thomas de Aquino Bispo, conhecido como Caboclo Acaçá, que exercia a função de ogan Ominazon. Entretanto, no tempo de Maria Ogorinsi residiam algumas famílias na Roça de Ventura. Em 1901, no período da fundação do Ventura, residia a família de Miguel Franklin da Rocha, Miguel Pejigã, e a numerosa família do alfaiate Celso Gonçalves Cortes, casado com Maria Amélia Cortes. No registro do óbito de Celso, datado de 26 de outubro de 1901, consta que em sua casa residiam seus seis filhos: Celso Filho, Abílio, José, Cecília, Abelardo e Aida .
Desses, Gaiaku Luíza conheceu Cecília e Abílio, a primeira como vodunsi de Oya e Abílio como ogan. Provavelmente Celso, sua esposa e seus outros filhos José, Abelardo e Aida também eram membros religiosos do terreiro, já que fica descartada a possibilidade, devido sua rentável profissão, de ter sido caseiro da Roça. Quatro anos mais tarde, Aníbal Gomes de Souza registrou o falecimento, no dia 10 de janeiro de 1905, de Cecília Euzebia dos Santos, com 23 anos de idade, casada com Rodolpho Nascimento da Cruz, filha de Manoel João dos Santos e “moradores na roça de Ventura” . Rodolpho e Cecília são identificados respectivamente como ekede e ogan antigos da Roça de Cima que residiam com seus parentes na Roça de Ventura no início do século XIX.
Boboso oferece pistas importantes ao citar outros nomes ligados ao Seja Hundê que foram iniciados por Ludovina Pessoa, Zé de Brechó e Maria Ogorinsi. Entre alguns nomes Boboso menciona Julia Gomes, Maria Magdalena de São Pedro Gomes, ambas provavelmente iniciadas por Ludovina e/ou Zé de Brechó; Gamo Edwirgem, de Oxum, Julieta Nascimento, conhecida como Santinha e Deocleciana Arlinda do Nascimento, conhecida como Tutuzinha, ambas filhas de Julia Gomes, que foram iniciadas por Maria Ogorinsi. Julia Gomes era moradora da citada Casa Estrela, que se incluía entre as destacadas africanas moradoras da Recuada, que já me referi. Sua filha Deocleciana Arlinda do Nascimento, por exemplo, encontra-se incluída entre as herdeiras do inventário de Julia Guimarães Vianna, acima referido. Além de Julia Gomes ter sido a primeira juíza perpétua, portanto a fiel guardiã dos bens materiais e segredos da Irmandade da Boa Morte, sua casa era utilizada como uma espécie de hunkó, local onde era realizada a iniciação das vodunsis da Roça de Cima.
Maria Magdalena de São Pedro Gomes, conhecida como Tatá de Oiá, e também como Tatá de Brechó, o que evidencia sua filiação espiritual a Zé de Brechó, era moradora no Corta Jaca, vizinho à casa de Maria Motta. Maria Magdalena nasceu em 1853 e era filha de João Marinho Falcão, o citado “pedreiro da municipalidade” que fez vistorias e alinhamentos de ruas da Recuada nas décadas de 1830-40 .
Magdalena, de cor parda e solteira, teve sete filhos com Padre Eráclio Mendes da Costa, das quais seis eram mulheres, todas elas ligadas a Maria Ogorinsi. Uma delas casou-se com o guarda municipal Diocleciano Macambira. Além de guarda fiscal, Diocleciano era babalorixá, tendo sido iniciado por tio Fadô. Um filho desse casal, por sua vez, casou-se com uma filha do babalorixá Antônio Porcino Rodrigues, conhecido como Totonho Cabeçorra, meio-irmão de Miguel Franklin (ou Rodrigues) da Rocha, Miguel Pejigã, pai de gaiaku Luísa .
Já comentei que o culto do Bitedô reunia “altas personalidades” africanas em volta de Azonsur. Considerando que esse culto deu origem à Roça de Cima, certamente seus primeiros membros efetivos e acólitos eventuais eram também aqueles oriundos do Bitedô, tais como Tio Fadô, Jequitibá, Faustino, Chiquinho de Babá, Felicidade Vieira Tosta, Sophia de Tal, sua filha Águida de Oliveira e outros, além daquelas mulheres do partido alto, como eram denominadas africanas e crioulas endinheiradas, que se reuniam em torno da devoção da Boa Morte e do culto à ancestralidade e voduns em Cachoeira.
Quando Aurelino, Boboso e outros antigos ogans referem-se às relações fraternais e de troca de saberes e fazeres entre os candomblés de Cachoeira e São Felix, não se pode descartar a possibilidade da intervenção de tio Anacleto, que vou falar oportunamente, na formação do candomblé da Roça de Cima, principalmente porque ele era um sacerdote muito reputado e afamado, e de outras sacerdotes, como Faustino Lucumi, que era afilhado de Zé de Brechó .
A segunda gaiaku do Seja Hundê foi Maria Epifania dos Santos, conhecida como Sinhá Abalha e hierônimo Ogorinsi Lufame. Sinhá Abalha foi investida no cargo de gaiaku do Seja Hundê em 1937 em meio a sérios conflitos entre os membros do terreiro, que não aceitaram sua investidura. Diziam eles que Sinhá Abalha não era jeje marrin, e sim jeje mudubi, filha de Zé de Brechó, a “nação” da Roça de Cima. Diziam também que ela era irmã de santo de Maria Ogorinsi, portanto não estava habilitada a assumir o cargo tendo como filhos de santo seus sobrinhos espirituais.
Esse dado é muito importante porque contraditório. O que subentende aqui é que ao justificar que Sinhá Abalha era jeje mudubi e ao mesmo tempo irmã de santo de Maria Ogorinsi significa dizer que a primeira era filha de santo de Zé de Brechó e Maria Ogorinsi filha de santo de Ludovina Pessoa. O problema volta ao seu ponto de partida ao questionar se Zé de Brechó (ou sua mãe e/ou irmãs) não seria o líder religioso da Roça de Cima em épocas anteriores a Ludovina Pessoa.
Se assim for, Sinhá Abalha foi iniciada antes de Maria Ogorinsi, o que lhe conferia legitimidade em sucedê-la, e sua fraternidade espiritual com ela dava-se pelo fato de ambas terem sido iniciadas no mesmo terreiro. O fato é que, sendo finalmente investida no cargo, a reação da maioria dos filhos de santo de Ogorinsi Missime foi abandonar o terreiro, entre os quais o pejigã Miguel.
Essas relações de conflito são comuns em circunstâncias em que o poder encontra-se temporariamente em vacância e no limiar de uma nova entronização. Aliás, aceitação e posterior acomodação e harmonização do poder é comumente antecedida de uma relação de conflito, como acontece comumente nas relações de familiaridades simbólicas e biológicas que ligam os terreiros de candomblé uns aos outros.
No caso de Sinhá Abalha com os filhos de santo de Maria Ogorinsi a pax foi restabelecida não substituindo Miguel Pejigã do alto cargo que exercia no terreiro, mesmo ele tendo abandonado o terreiro, fortalecendo os que permaneceram no terreiro, e iniciando um novo corpo de sacerdotes (ogans e vodunsis) entre os parentes biológicos de Maria Ogorinsi, no caso os filhos e sobrinhos de Luiz Gonzaga do Sacramento, e outros ogans e vodunsis cujas famílias eram ligadas à família de Zé de Brechó, como Maria Aniceta Conceição, mãe de ogan Boboso. A partir daí, Sinhá Abalha pôde finalmente introduzir modificações rituais no terreiro e inaugurar um período de grandes festas e prosperidade que durou até 1950, quando faleceu.
Do falecimento de Maria Ogorinsi à investidura de Sinhá Abalha transcorreram sete anos de vacância no Seja Hundê. Sete anos também foi o tempo que o terreiro ficou paralisado até a investidura da terceira gaiaku, Adalgisa Combo Pereira, de Parará . Pararassi, como era conhecida, teve uma vida sacerdotal atribulada e o Seja Hundê um período desfavorável, em relação ao tempo de Sinhá Abalha. Foram poucas as iniciações realizadas e aqueles que foram submetidos à iniciação logo abandonaram o terreiro devido ao seu temperamento intempestivo.
Sete anos depois do falecimento de Pararassi, em 1978, a sucedeu Elisa Gonzaga de Souza, conhecida como Temi Aguessi , sobrinha de Maria Ogorinsi. Nesse momento o Seja Hundê voltou a um período de harmonia porque, ao contrário de Pararassi, Aguessi era uma pessoa de bom trato e bem humorada. Parece que a investidura de Aguessi veio solucionar um velho problema do Seja Hundê, porque a roça do terreiro era propriedade de Maria Ogorinsi e isso envolvia questões de herança e sua família, mesmo aqueles não envolvidos com o candomblé, exigiam sua regularidade.
Aguessi residia na mesma casa onde residiu Maria Ogorinsi, juntamente com sua sobrinha e ekede. No início de 1990, já doente e senil, residiu na residência de Boboso, no alto do Cruzeiro (Bitedô), depois na ladeira Manoel Vitório, onde faleceu em 1994. A ela sucedeu Augusta Maria da Conceição Marques, Gamo Lokosi , filha de santo de Sinhá Abalha, que é a atual gaiaku do terreiro....


sábado, 25 de setembro de 2010

Imagens da Destruição da Área de Mata do Zô Ôgodô Bogum Malê Seja Hundê

Sítio Arqueologico Destruído pelo trator.

Faiança Portuguesa do século XIX.

Fonte de Nanã soterrada pelo trator.

Área devastada para construção de lotes.

Ávores Derrubadas

Restos das Paredes da Roça de Cima destruidos pelo trator

Adicionar legenda

Vestigios das antigas Paredes da Roça de Cima


Fonte Ameaçada de Destruição

Título de posse da Terra dos Venturas de 1858.




O empreendedor advogado Dr. Ademir Passos tem lá suas razões para encarar o negócio. Ele é também posseiro da problemática e irregular fazenda Caquende, um balneário cheio de história, lugar onde acolheu Von Martius e Von Spix, mas que foi abandonado pelo ex-deputado e ex-vice-governador Edvaldo Brandão Correia. Dizem por aí que o Dr. Ademir pretende fazer um condomínio de luxo, algo do tipo Costa de Sauípe.


Ataque ao Zô Ôgodô Bogum Malê Seja Hundê (Roça dos Ventura) em Cachoeira


A Roça do Ventura com árvores centenárias de valores religiosos, histórico e cultural esta sendo devastada arbitrariamente sem o alvará do CREA pois quando questionado ao responsável pela terraplanagem ele não emitiu nenhum documento que comprovasse a legalização da obra .

Segundo Cacau Nascimento em seu Blog parte da Roça de Ventura, como é conhecido o terreiro de candomblé jêje marrin denominado Zô Ôgodô Bogum Malê Seja Hundê, está sendo invadida pelo posseiro da Fazenda Altamira, o advogado Ademir Passos. Segundo o ogan responsável pelo terreiro, um trator está desmatando a área, provavelmente para iniciar imediatamente a construção de um condomínio residencial. Segundo ele, o tratorista por pouco não derrubou uma árvore sagrada, plantada em 1878, que fica localizada no limite entre o terreiro e a fazenda.

A fazenda Altamira, que a comunidade-terreiro do Seja Hundê chama de Roça de Cima, pertencia na década de 1870 a José Maria de Belchior, conhecido como Zé de Brechó. Nessa fazenda, ele, juntamente com a africana Ludovina Pessoa, a responsável pela fundação do terreiro do Bogum, de Salvador, fundaram o Seja Hundê de Cachoeira que depois da abolição da escravatura se transferiu para a uma roça contígua, a citada Roça de Ventura.

Vendido em 1904 pelas irmãs e herdeiras de Zé de Brechó aos filhos de Zacharias Milhazes, estes vendo muitas assombrações no lugar venderam, em 1912, ao advogado Moyses Elpidio de Almeida, Em 1922 a fazenda foi adquirida pelo advogado Nelson Falcão em mãos de seu colega Moyses. Este, também assombrado, vendeu a Aurino Longuinho (que ao ver numa assombração quase morre). Longuinho então revendeu , ou devolveu o pepino, ao Dr. Nelson, que legou a seus filhos, que, assombrados, legaram a seus netos, permanecendo até poucos dias atrás em mãos da última herdeira, Marta Falcão. Assombrada, doava, oferecia a propriedade apela bagatela de 20 mil reais (15 mil morria). Muito barata para uma propriedade de 12 hectares de terras bem localizadas e cheias de axé plantados por africanos. Segundo Cacau Nascimento,o porquê da barateza era que o imóvel está até aqui atolado de dívidas com o INCRA, porque tudo desmoronou, a trerra perdeu a força, como todos os outros proprietários, se deu mal .o Seja Hundê está em O rocesso de tombamento pelo IPHAN e no projeto está incluída a área onde originou o terreiro.

O empreendedor advogado Dr. Ademir Passos tem lá suas razões para encarar o negócio. Ele é também posseiro da problemática e irregular fazenda Caquende, um balneário cheio de história, lugar onde acolheu Von Martius e Von Spix, mas que foi abandonado pelo ex-deputado e ex-vice-governador Edvaldo Brandão Correia. Dizem por aí que o Dr. Ademir pretende fazer um condomínio de luxo, algo do tipo Costa de Sauípe.

quarta-feira, 22 de setembro de 2010

O fim anunciado da cultura brasileira ou porque não votarei na Marina Silva ou ainda: aonde as coisas podem chegar!!!

Ayrton, desastrado cobrador da empresa Sá, Pato & Cia. sofre um acidente automobilístico na região de Friburgo (Rio de Janeiro) e é resgatado pelo recluso professor Benson, que o leva para sua residência. Ali, ele trava contato com a grande invenção de Benson, o "porviroscópio", um dispositivo que permite ver o futuro, e com Miss Jane, a bela e racional filha do cientista.

Através de Jane, Ayrton é posto a par da disputa pela Casa Branca nos Estados Unidos da América do ano 2228, onde a divisão do eleitorado branco entre homens (que querem reeleger o presidente Kerlog) e mulheres (que pretendem eleger a feminista Evelyn Astor), transforma o candidato negro, Jim Roy, no 88° presidente dos EUA.

A alegria dos negros, contudo, dura pouco. Incapazes de aceitar a derrota, os brancos (agora novamente unidos) elaboram uma "solução final" para o "problema negro", muito mais sutil e eficaz do que aquela elaborada por Hitler para os judeus. Esta história (quase real... ou não?) foi escrita em 1926 pelo criador do Sítio do Pica-Pau Amarelo, o grande Monteiro Lobato, intitulado "O Presidente Negro", (originalmente denominado "O Choque das Raças" e posteriormente, "O Presidente Negro ou O Choque das Raças: romance americano do ano 2228"), é o único romance (e de ficção científica) escrito por Monteiro Lobato.
Em 2008, a coincidência de dois pré-candidatos, um negro (Barack Obama) e uma mulher branca (Hillary Clinton) disputando a Casa Branca contra um candidato branco, despertou novamente a atenção da mídia brasileira para "O Presidente Negro". O livro ganhou nova edição da Editora Globo e, em algumas resenhas foi citado que Lobato teria previsto o surgimento da internet, graças a um diálogo das personagens Ayrton e Miss Jane sobre o ano de 2228:

"Ainda havia jornais neste tempo?"
"Sim, mas jornais nada relembrativos dos dias de hoje. Eram radiados e impressos em caracteres luminosos num quadro mural existente em todas casas."
O autor também fala do "teletrabalho": "em vez de ir todos os dias o empregado para o escritorio e voltar pendurado num bonde que desliza sobre barulhentas rodas de aço, fará ele o seu serviço em casa e o radiará para o escritorio. Em suma: trabalhar-se-á a distancia.

As idéias racistas defendidas por Monteiro Lobato estavam presentes em sua obra desde pelo menos 1900, quando leu L’Homme et les Sociètes (1881) de Le Bon, onde o autor afirma que os seres humanos foram criados de forma desigual e que a miscigenação é um fator de degeneração racial, além de que, as mulheres, brancas ou negras, são inferiores até mesmo quando comparadas aos homens de "raças inferiores".

Embora tenha tentado descobrir uma alternativa à "teoria científica" da desigualdade das raças, através da leitura de Comte e Spencer, nos anos seguintes, livros dos poligenistas Hyppolite Taine e Ernest Renan, figuras influentes no racialismo do século XIX, tornaram-se importantes fontes de referência para o escritor, que inclusive recomendava sua leitura aos amigos.

Em carta de 1905 endereçada a um amigo chamado Tito, Lobato declara ser impossível "civilizar" e "corrigir" o povo brasileiro, "devido ao fatalismo das inclinações, dos pendores, herdados com o sangue e depurados pelo meio". Ele conclui, absurdamente, que apenas uma injeção de "sangue da raça mais superior" asseguraria o futuro do país. Nesta mesma carta, ele chama de "patriota" ao brasileiro que se casasse com "italiana ou alemã".

Em 1908, talvez ecoando uma célebre declaração do Conde de Gobineau (que certa feita havia chamado os cariocas de "macacos"), Lobato confidenciou ao amigo Godofredo Rangel que a miscigenação criara uma classe de "corcundas de Notre Dame" nos subúrbios do Rio de Janeiro, declaração que trazia implícita uma crítica aos intelectuais da época, segundo os quais haveria um "padrão de beleza grega" entre a população mulata da cidade. Lobato advoga ainda a adoção de um esquema de segregação racial para o Brasil, nos moldes do então vigente nos EUA e a imigração de europeus para consertar a "anti-Grécia" carioca... Talvez seja por isso que vemos a Tia Anastácia ser retratada como uma cozinheira ignorante, fato que se repete até mesmo em revistas distribuídas ainda hoje com os personagens do Sítio, onde idéias ainda estranhas como as por Lobato admiradas estão em voga.

No livro "A Lei do Santo" (Rio, Ao Livro Técnico, 2000) de Muniz Sodré, cientista social, encontramos um conto igualmente profético intitulado Purificação. Traz a história da expansão política das igrejas evangélicas no Brasil, as quais têm como concorrente, o movimento “carismático” da Igreja Católica. No conto, se agrupam em torno de uma organização política, o Partido Evangélico, que consegue maioria no Congresso Nacional.

Muniz Sodré, a certa altura, logo a seguir deixa claros, para que o leitor comece a pensar, o que está por trás da Teologia da Prosperidade que orienta o neopentecostalismo: “A palavra de ordem era purificação. Casas de diversão e cultura eram compradas e transformadas em templos. A rede evangélica de televisão cobria o território nacional com mensagens de regeneração dos costumes e das crenças d toda espécie. Os pregadores eram todos especialistas em marketing e técnicas de motivação coletiva”.
Sodré anteviu, por exemplo, a resistência que está acontecendo em muitas escolas para ser implantada a história do povo africano e o recente ataque de evangélicos à terreiros afrobrasileiros: “Os evangélicos em especial queriam apagar todas as marcas consideradas negras. Por isso, havia agora ritos de apagamento. Um lugar com sinais de culto afrobrasileiro era perseguido, eventualmente arrasado a fogo e purificado com sal. Todos os negros que no início haviam aderido às seitas evangélicas terminaram sendo considerados suspeitos e finalmente expulsos”.

Os evangélicos se dizem perseguidos pela mídia, mas caso não existisse meios de comunicação denunciando a corrupção nesse meio, imagine as bizarrices que teríamos em nosso país. Interessante é a postura de gente como o jogador Kaká e Marina Silva, que se dizem vítimas, tentando se passar por modelos inocentes de um perseguição maior da qual são cúmplices e parceiros. Graças a Exu que a "Igrejinha" da seleção saiu maravilhosamente desonrada da Copa. E espero que Exu nos ajude a não colocar uma evangélica no topo do país, apesar de certos setores umbandistas estarem, vergonhosamente apoiando, sabe-se lá por quê, a candidata-símbolo das barbaridades feitas contra o povo do santo.

Somos descendentes de auropeus, asiáticos, indígenas e africanos. Devemos grande parte de nosso modo de pensar e sentir ao povo africano e é aterrorizador ver o que o cristianismo das igrejas evangélicas criou nos países do continente berço da cultura humana, onde crianças são acusadas de bruxarias pelos pastores, que pedem uma quantia equivalente a cerca de 4 meses de trabalho para que as crianças sejam exorcizadas. O tal exorcismo consiste em mutilar os corpos das crianças (como poderão ver no vídeo anexo) e queimar os ferimentos com o fogo de uma vela.

O principal precursor dessa doutrina perversa que campeia na África (e está pululando na Amazônia - de onde a candidata verde saiu - entre os nossos índígenas) foi um alemão e pastor neopentecostal conhecido como Reinhard Bonnke, o qual foi recebido pela Igreja Batista da Lagoinha no ano de 2007 com todas as honras de um "grande homem de Deus".

O jornal alemão Die Zeit o caracteriza como "um dos mais bem sucedidos missionários do nosso tempo". Como se não bastasse, esses missionários na África ainda recebem cachês milionários para virem pregar em congressos em outros países, como aconteceu aqui no Brasil. E muitas igrejas brasileiras já estão indo prá lá, buscar o dinheiro e disseminar sua doutrina entre os já sofridos povos africanos.


Nwanaokwo Edet, 9 anos, foi forçada a beber ácido pelo pai após pastor evangélico acusá-la de bruxaria. A menina ficou cerca de 1 mês internada em Akwa Ibom, Nigéria, antes de morrer

Os missionários brancos, vindos da América e da Europa, não se envolvem diretamente com a vitimização das crianças, como já era possível imaginar. Isso representaria muitos problemas para eles, tanto na África como em seus países de origem; um problema desnecessário, uma vez que o negócio deles é promover grandes cruzadas e construir grandes ministérios.

Moradores revoltados com Udo, 12, acusando-o de ser uma bruxa. Seu braço quase foi cortado com um facão. Fonte: http://guardian.co.uk

Dessa forma, o que resta a eles é usar o medo da bruxaria que os africanos possuem, pois o assunto bruxaria está presente em sua cultura há milênios. Não é mais possível, na África os evangélicos se utilizarem do argumento da "macumba" e do "encosto" como fazem aqui no Brasil quando se referem a Umbanda e ao Candomblé, pois mais de 70% da população é evangélica. O que eles fazem é usar um mito antigo de que existem "crianças bruxas" que, segundo eles são enviadas por Satanás para atrapalharem os negócios da família, trazendo má sorte e doenças.

Estima-se que mais de 5000 crianças foram abandonadas na Nigéria desde 1998 por conta das acusações de bruxaria feitas pelos pastores evangélicos, para morrerem; isso quando não são mortas, espancadas, dilaceradas e violentadas antes de serem abandonadas. Estatísticas dizem que a cada 5 crianças abandonadas, 1 acaba morrendo de desnutrição ou por conta das torturas indescritíveis que elas sofrem.
Juntem todas essas questões e pensem bem. Lembrem-se das "previsões" de Monteiro Lobato e de Sodré. Nossa cultura musical já está sendo esmagada pela dominação evangélica quando ligamos o rádio e ouvimos os trinados horrorosos de cantores e cantoras brasileiras que querem imitar o estilo "gospel"de canto. Quando ligamos a TV e vemos os calouros do Raul Gil, desesperadamente se esgarçando e dizendo "Graças a Deus" no mesmo modo fanático e falacioso de interpretar. Quando temos de engolir Robinho e Kaká dizendo "Amém Jesus" nos gols que fazem. Vejam o vídeo (apesar dele ainda arrastar alguma asa para os "bondosos" católicos) e percebam até onde as coisas podem chegar. Lembrem-se destas imagens na hora de votar. Lembrem-se das crianças africanas, de sua pele de ébano sendo queimada pela estupidez. E para a platéia que ainda julga ser este apenas problemas deles lá, na África, imaginem crianças brancas, loiras, sofrendo a lavagem cerebral e a tortura psicológica que só a imaginação de quem abraça esse tipo de fé pode ter.

E ainda tem (diri) gente que se diz do santo que quer abraçar este modelo de identidade evangélica para nossa comunidade e que diz, que se eles podem movimentar milhões (de almas e de grana), nós também podemos.
Como vêem, se adotarmos o mesmo sistema, haverá muita pouca coisa que não poderemos fazer...
Nota: A Materia não reflete necessáriamente a opinião do Blog, foi tirada de: http://acervoayom.blogspot.com/2010/07/o-fim-anunciado-da-cultura-brasileira.html