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quarta-feira, 6 de fevereiro de 2008

“Se nós não preservarmos a natureza viva, termina tudo” - Mãe Stella


“Se nós não preservarmos a natureza viva, termina tudo” - Mãe Stella


(Entrevista concedida a Clécio Max - Jornal A Tarde)


Hoje decidi colocar aqui esta entrevista que foi concedida há doze anos atrás, pela zeladora do Ilê Axé Opô Afonjá, em São Gonçalo do Retiro - Maria Stella de Azevedo Santos - Iya Ode Kayode - Stella de Oxossi, ou Mãe Stella, como é mais conhecida e carinhosamente chamada pelos filhos, filhas-de-santo e amigos. Na época ela completava 70 anos. A razão desta minha decisão prende-se com a actualidade que as suas palavras e os seus princípios ainda têm hoje em dia no Mundo do Candomblé. É também uma pequena e modesta homenagem àquela que eu considero uma das mais importantes Yalorixás de sempre na Bahia. Bisneta de Konigbágbé, o inesquecível, africano de Abanigéria, e dos Azevedo de Portugal, Mãe Stella nasceu em Salvador e ingressou no Candomblé aos 13 anos, tendo sido iniciada pelas mãos da tia Arcanja Soares de Azevedo. Aos 49 anos, assumiu o comando do Ilé Axé Opô Afonjá, substituindo Mãe Ondina. Foi a mais jovem mãe-de-santo a assumir o cargo, na Bahia. Mãe Stella deu continuidade à tradição da força do matriarcado no Opô Afonjá, onde as Yalorixás sempre foram figuras de destaque no culto afro-brasileiro. Formada em enfermagem pela antiga Escola de Saúde Pública da Bahia, está aposentada da profissão e dedica seu tempo ao terreiro. Foi a primeira Yalorixá a escrever livros e artigos sobre a cultura, as tradições e a essência da sua religião. “A história é nossa e nós temos que escrevê-la”, afirma Mãe Stella, que gerou polémica por se colocar contrária à prática do sincretismo religioso. Em conversa com o Lazer & Informação, a Yalorixá explica por que adoptou tal posição e fala sobre o relacionamento do Candomblé com a Igreja Católica, dentre outros assuntos.


Clécio Max - A Senhora é tida como a Yalorixá mais politizada que já reinou no Ilé Axé Opô Afonjá e gerou grande polémica quando se colocou contra o sincretismo, em 1983, durante a II Conferência Mundial da Tradição dos Orixás,em Salvador. O que mudou a partir daquele ano? Suas colocações ainda repercutem, especialmente no Candomblé?


Mãe Stella - Ainda repercutem, de modo geral. Mas aqui em casa mudou muita coisa. Nós conseguimos nos tornar independentes e colocar cada religião em seu lugar. A católica num lado, protestante em outro, e o orixá também no seu devido lugar.


C.M. - De que forma a prática do sincretismo prejudica o Candomblé?


Mãe Stella - O sincretismo é a fusão de duas religiões, uma mistura sem base que não corresponde a nada. Então não adianta dizer que tal caboclo corresponde a um santo, que tal orixá a outro santo, se não existe base que fundamente isso. As energias são diferentes. Nós nos apegamos muito ao sinal das energias, uma vez que cultuamos muito as forças elementais.


C.M. - Na época, a Senhora falou que plantava uma semente. No Ilé Axé Opô Afonjá ela vingou? E nos outros terreiros, o que aconteceu?


Mãe Stella - Vingou sim. Em outros terreiros isso também aconteceu, principalmente nos mais novos. Na verdade, eu acredito muito na juventude que sempre gosta de modificações, transformações, que na maioria das vezes são positivas. Daí eu acho que essa semente ainda está germinando em muitos outros terreiros, e tenho certeza que iremos colher bons frutos.


C.M. - Outra posição adoptada pela senhora, que também contou com o apoio de Yalorixás como Menininha do Gantois, Olga de Alaketo e Nicinha do Bogum, na mesma época, foi o combate à profanação do culto, criticando a exploração dos trajes, ornamentos e ritmos rituais do Candomblé durante o Carnaval de Salvador. Por quê?


Mãe Stella - O que se observava é que os espectáculos eram financiados por algumas pessoas que não tinham o mínimo conhecimento da pureza do Candomblé. Estavam fora da realidade e confundiam o Axé com plumas e paetês. Em 1993, voltei a defender, juntamente com representantes de outros terreiros, esta posição, quando surgiu a proposta de se utilizar o tema na decoração do Carnaval de Salvador.


C.M. - O sincretismo foi uma forma encontrada pelos escravos para desviar a atenção da Igreja, para evitar perseguições dos jesuítas e senhores de escravos, que eram contra a prática da religião que os negros trouxeram da Africa. O Candomblé também sofreu perseguição da Polícia. Nos últimos anos, vem sendo atacado constantemente por integrantes de seitas protestantes. Como a senhora encara esse tipo de ataque de pastores e bispos protestantes, que insistem em associar a imagem do demónio ao Candomblé?


Mãe Stella - Essa gente que faz isso, em princípio, é desinformação e não tem consciência do que seja a base de religião nenhuma. Porque, quando você tem essa consciência e valoriza a sua religião, não precisa ficar atacando as outras. Eu até tenho pena deles, porque estão num desespero de causa muito grande.


C.M. - No Candomblé, ao contrário de outras religiões, a figura da mulher é predominante. Por que isso acontece?


Mãe Stella - É o matriarcado. Isso se deve ao fato de que, quando o Candomblé chegou no Brasil, essa prática que nós conhecemos teve início com três senhoras: Iya Detá, Iya Kala e Iya Naso, que fundaram o primeiro Candomblé de que se tem conhecimento, a actual Casa Branca, que funcionava na Barroquinha. Isso não quer dizer que o homem não tenha capacidade para ser um Babalorixá, é que a mulher é a figura da mãe, e, quando as pessoas entram num Candomblé, procuram um aconchego maior. A mulher tem a capacidade de oferecer mais carinho. É apenas isso. De repente tem o fato de as mulheres seguirem a tradição africana de que, na casa de Xangô ou no culto a Xangô, ele é o chefe, mas as mulheres predominam porque têm o título de Iya Naso: a mulher é o ayabá principal da casa de Xangô e é ela quem manda. Mas ambos têm a mesma capacidade.


C.M. - Mas também existem cerimónias que só podem ser praticadas por homens, a exemplo do culto aos Eguns (espíritos dos mortos), não é?


Mãe Stella - Aí já é outro departamento e não tem nada a ver com o orixá. Egum é culto aos ancestrais, aos mortos. Uma comunidade na qual só os homens têm um maior poder. Nessa ocasião só tem uma mulher que pode participar, que seria a Iya Gã.


C.M. - Qual a importância da preservação das reservas florestais para o Candomblé?


Mãe Stella - O material principal para a prática do Candomblé são as folhas. Se nós não preservarmos a natureza viva, termina tudo. Sem folha não há ritual, não há orixá. Para se fazer qualquer ritual, o primeiro elemento a ser utilizado são as folhas sagradas.


C.M. - O que é o “Projecto das Folhas Sagradas”?


Mãe Stella - É um projecto oriundo da Secretaria Municipal do Meio Ambiente, e o Secretário Juca Ferreira tem sido muito dinâmico nesse aspecto, não só no Ilé Axé Opô Afonjá como em outros terreiros. Ele tem lutado muito em prol da preservação da natureza, e o lugar onde mais se cultiva as folhas sagradas é num terreiro de Candomblé. O terreiro participa do projecto orientando em alguns aspectos e apresentando ideias.


C.M. - Em visita a Salvador, o Rei de Ketu, Ade Tutu, propôs a unificação dos cultos afros como forma de preservá-los. A senhora concorda com essa ideia?


Mãe Stella - Se todos os cultos são afros, não tem por que separá-los, independentemente da nação. Em algumas nações, os rituais são diferentes, mas a essência é a mesma. Hoje, as casas são muito amigas, se visitam e se ajudam mutuamente.


C.M. - Como anda a relação entre o Candomblé e a Igreja Católica?


Mãe Stella - O que nós pregamos sempre é o respeito mútuo. O importante é que não existam agressões. O entrosamento não tem muita importância, porque são religiões paralelas. O importante, volto a afirmar, é que exista o respeito. Existem pessoas que frequentam o terreiro e que vão à Igreja, e isso é normal. Quando falei da questão do sincretismo, me referia ao fato de não se misturar as obrigações. Como, por exemplo, fazer sua obrigação para o orixá e ir à Igreja porque sincretizou o orixá com um santo. Não sou contra a Igreja Católica, e sim contra o sincretismo. A nossa maior preocupação é que o ser humano se sinta bem, se realize. Se isso acontece frequentando as duas crenças, melhor para ele.


C.M. - E com relação ao terreiro do Ilé Axé Opô Afonjá, quais os planos da senhora?


Mãe Stella - Eu tenho tantos planos para o terreiro que eu morro, meus filhos crescem, os netos ficam adultos e, se eles forem realizados, serei o ancestral mais feliz do mundo. Um deles é conseguir, cada vez mais, conciliar o culto, a religião, com a educação e com a independência. Outros, é que cada omo orixá tenha a sua profissão, seja uma pessoa instruída, porque religião não é profissão e de religião não se vive. Ela é para se praticar. Outro plano é conseguir a integração real do Candomblé, com todo o povo do Candomblé entendendo o que é comunidade, unidade e praticando a religião por fé e vocação, que não queira aproveitar o orixá para acções imediatistas.

segunda-feira, 4 de fevereiro de 2008

Entrevista com Mãe Stella de Oxossi

Numa manhã de quarta-feira, entre uma consulta e outra, Mãe Stella de Oxóssi nos recebeu na casa de Xangô e falou sobre o sacerdócio, a história do candomblé baiano e do terreiro Ilê Axé Opô Afonjá. A conversa não pôde ser longa, porque, como sempre, uma fila de pessoas aguardava por seus conselhos. Ao seu lado, o inseparável pastor alemão. Iniciada na religião dos orixás há mais de 60 anos, Maria Stella Azevedo dos Santos é mesmo uma mulher singular. Assim como fizeram suas predecessoras no Afonjá, Mãe Stella mantém a tradição religiosa herdada da África com uma seriedade que faz desse terreiro um referencial para todo o candomblé. Uma tarefa que, garante ela, a absorve integralmente. A autora de livros, enfermeira e funcionária pública aposentada tem que dividir o seu tempo entre as atividades religiosas, as consultas e as solicitações de entrevistas, palestras e conferências em vários países. Com voz branda e uma fluência verbal invejável, ela revela a clareza e inteligência que a tornaram uma líder religiosa respeitada em todo o mundo. Mas, para as crianças do Afonjá, ela é apenas a “Tia Stella”.
por Agnes Mariano

AM - Nas comunidades religiosas nagôs, as mulheres têm um papel muito importante, diferente do que acontece em outras sociedades e outras organizações religiosas. Gostaria que a senhora falasse por que isso acontece. É uma tradição que veio da África? Em que a mulher é diferente do homem? Porque elas têm esse papel?

MÃE STELLA - Veja bem, eu vou falar do Brasil e da Bahia, de algumas casas onde o valor, a liderança feminina é maior. Isso se deve às pioneiras do candomblé no Brasil, três mulheres que depois da libertação tiveram condições de abrir uma casa para culto aos orixás. Elas é que formaram a primeira casa que se tem conhecimento da nação iorubá no Brasil, que seria a Casa Branca. Então, essa casa foi crescendo, fazendo muitos filhos e ficaram essas três senhoras como responsáveis. Daí vem o valor feminino, porque essa casa tinha a característica de não iniciar homens. Se não iniciava homens e todos eram do gênero feminino, é lógico que não podia ter homem na direção. Então, a casa foi crescendo e sempre quando a coisa cresce, às vezes acontece um racha, não é? Foi o que houve na ocasião de Maria Júlia, a senhora que fundou o Gantois. Quando fundaram o Gantois, a característica também era a de não ter homem como líder, como pai-de-santo da casa. Mas no Gantois não se impediu que os homens tivessem cargos que sobressaíssem. Homens podem ter cargo, só não podem sentar como pai-de-santo. Depois do Gantois, aconteceu com Mãe Aninha, que fundou essa casa (o Ilê Axé Opô Afonjá) e que também seguiu essa mesma norma, que homem não seria líder da casa de Xangô, que é aqui o São Gonçalo. Aqui também se iniciam homens, mas homens iniciados aqui ou no Gantois já sabem que não podem ser pais-de-santo na casa de origem. Mas como essas duas casas iniciam homens e sabe-se que todo mundo, depois de determinado tempo, quando está completamente pronto para o orixá, poderá assumir uma liderança, alguns desses homens fundaram as suas casas, tanto do Gantois quanto do São Gonçalo. Não é proibido ser pai-de-santo, mas dentro dessas casas, na liderança, somente mulheres. Como existem casas grandes… A casa de Dona Olga (o Alaketu) também, porque a primeira liderança lá foi feminina. É uma casa antiquíssima, mais antiga do que essa nossa. E as mulheres dessas casas foram lideranças fortes, que deixaram o nome na história, que produziram, trabalharam em prol da crença dos orixás, que viajavam, que faziam movimentos para a libertação do candomblé. Tiveram muita resistência. Então, sabe-se que, a princípio, essas casas só podem ter responsáveis do gênero feminino. E, diga-se de passagem, a liderança feminina no candomblé é uma coisa muito forte, porque a mãe é mulher. Por mais rude ou enérgica que ela seja, sempre tem aquela nuance feminina para determinados detalhes. E para falar a verdade, eu acho muito bonito uma mulher como mãe-de-santo. Não que o homem também não tenha o seu charme, mas acho que eu já me acostumei com isso, ver uma mãe-de-santo na liderança. O homem tem o valor dele, existem pais-de-santo competentes, verdadeiros. Podemos dizer que o candomblé, na atualidade, não é uma crença, uma religião só de negros, nem só de mulheres. Os orixás são simbolizados pelas forças naturais, que são os fenômenos da natureza, e são coisas que não têm sexo. O vento tem sexo? Qual é o sexo do vento? Apesar de simbolizar o orixá chamado Iansã, o espiritual não tem sexo, não tem raça, nada disso.

AM - A senhora foi iniciada muito cedo, com 13 anos. A senhora imaginava que ocuparia um cargo como esse, tão importante? E como a senhora experimentou isso na sua vida?

MS - As pessoas que entram para a crença dos orixás com fé, com consciência do que estão fazendo, elas têm o gosto, a vontade de servir o orixá, de fazer tudo em prol. Eu creio que raríssimas pessoas entram para o candomblé já com a pretensão de ser mãe-de-santo. Quem tem juízo não pensa assim. Porque aí não é uma coisa espiritual, passa a ser uma coisa de superação. No candomblé, é a gente que se supera, não tem que superar o outro, tem que superar a si próprio. Não tem que tentar superar o outro com essa questão de valores materiais, não tem nada disso. E eu nunca tive essa pretensão. A minha alegria era servir ao orixá e à minha mãe-de-santo, fazer as coisas dentro dos parâmetros certos. Mas, por isso ou aquilo, o orixá, por intermédio do Oluô, me escolheu como líder daqui. A substituição aqui é feita através do jogo de búzios. Como na Casa Branca, que também é através do jogo de búzios. Do Gantois, eu não posso dizer muito, porque sabe-se que é uma substituição familiar. Cada casa tem um uso.

AM - E sobre a casa, o terreiro, como a senhora define? Porque antropólogos, escritores, visitantes falam muitas coisas. É uma casa religiosa? Tem semelhanças com uma escola, uma universidade, uma casa terapêutica, onde as pessoas buscam cura? Como a senhora define o terreiro? É uma família?
MS - A princípio, todo terreiro é uma família, porque é a família espiritual. Nosso chefe, nosso patrono aqui é Xangô. Então, tudo aqui é feito com as bênçãos, as determinações de Xangô. Ele não vem e fala, mas, através dos búzios, de certas práticas, nós podemos contar com ele. Então tudo o que aqui é feito é por orientação espiritual de Xangô. E, como na vida, a comunidade axé é uma escola. Aqui a gente aprende o lado espiritual - e o espiritual apenas por si só é importante -, mas não é a única coisa que existe na sociedade, por isso temos o lado social. Temos o espiritual e o social. Então esse espaço que nós ocupamos é como se fosse uma pequena cidade. Uma cidade que já vem do tempo de Mãe Aninha, quando ela caracterizou aqui como a África, botando uma casa para cada orixá. Enquanto lá, cada orixá tem a sua tribo, a sua cidade, ela deu um espaço para cada um, onde eles têm seus rituais, em dias diferentes, separados, cada um seguindo os seus preceitos. E também a resistência maior da raça negra foi na religião, na crença dos orixás. Se não fosse assim, a mulher da crença nos orixás não teria essa auto-estima. O pessoal de candomblé tem auto-estima, o pessoal de candomblé se gosta, gosta de si próprio e, até por osmose, gosta do irmão, porque os que entram aqui estão todos sobre orientação de Xangô ou de Oxalá. São todos irmãos e a coisa mais normal do mundo é que um irmão goste do outro, com raras exceções, mas é normal na vida.

AM- Fale mais sobre essa resistência através da religião.

MS - Isso vem do tempo de Mãe Aninha, a fundadora, que naquela época de repressão procurou apoio até com o presidente da República e se integrou na Igreja Católica. Naquele tempo, ser da Igreja Católica era ter status, porque quem mandava era o branco e essa era a religião do branco. Daí foram fundadas as irmandades, como a do Rosário dos Homens Pretos, a Irmandade da Barroquinha e outras mais, onde a mulher negra podia fazer os seus cultos. Era proibido adorar os orixás. Quem era espiritualizado precisava encontrar qualquer coisa espiritual para se apegar e foi por isso que surgiu o sincretismo, quando se faziam as coisas meio mascaradas. Se adorava o orixá de uma forma velada, como se estivesse cantando para os santos. E o negócio foi tão seguro que, atualmente, nós já estamos livres, mas temos tido muito trabalho para o povo de orixá se conscientizar da importância do orixá, da força e da energia. O orixá é uma coisa independente de qualquer outra crença, como qualquer outra crença é independente do candomblé. Então, o bom e o bonito é que cada um se fixe na sua crença, nos seus símbolos, na sua energia e não precise se segurar no outro para mostrar potencialidade.

AM- A senhora tinha falado que, além da parte espiritual, existe a parte social do terreiro.

MS - Pois é. Aqui, além de cuidar da parte do orixá - que são as festas que você conhece, independente dos rituais internos que só cabem a nós -, a gente tem a parte social. Fundamos uma escola, num convênio com a prefeitura, que tem 300 crianças. As professoras fazem um serviço muito bom e que a prefeitura reconheceu, tanto que ela já passou a ser escola referência. É uma escola da rede pública e atendemos à lei que diz que a liberdade de culto deve existir. Ali não se ensina candomblé nem iniciações, mas muita coisa relacionada com a cultura africana iorubá. Nós não somos africanos, somos brasileiros, afro-brasileiros. É fanatismo dizer que somos africanos. Somos afro-brasileiros, descendentes de africanos. Então, alguma coisa da cultura africana é passada no colégio, mas nós não aceitamos apenas alunos e pessoas ligadas aos orixás. É um espaço aberto. Temos professores e alunos de outras religiões. Eles não estão aprendendo religião, porque religião não se impõe. Escola para religião é bobagem. O professor e o diretor do colégio têm que enfatizar a cultura deles, mas não se força religião. Fizeram isso com os negros, com os índios, mas isso é contra a humanidade.

AM - E vocês têm também o museu, a biblioteca, oficinas…

MS - É, estou falando da escola só para você entender como funciona. A diretora Marivalva está ali há 20 e alguns anos, desde quando funcionava nesse mesmo lugar uma creche, num convênio com outro órgão. Como este órgão foi responsável pela construção, compramos o prédio, mesmo sendo aqui dentro do terreiro, para poder ser nosso. Como a escola foi uma experiência boa - está sendo boa e será melhor, com fé em Deus - resolvemos fazer o museu, em 1983. Vera Felicidade foi a pessoa responsável, uma filha-de-santo nossa. Eu estava recentemente aqui no axé e fiz uma viagem à África, onde vi aquelas coisas todas. Aqui também eu via tantas coisas bonitas jogadas aí pelos cantos. Até que, conversando com Vera, ela tomou para a si a responsabilidade e criou o Museu Ohun Lailai. Temos uma biblioteca também, onde a responsável é Luzia Leal, uma bibliotecária aposentada. Todos aqui são voluntários. Luzia instalou a biblioteca, deu nome e está tomando conta. Nós recebemos doações: eu tinha a minha biblioteca particular, que doei toda, e muitas pessoas também têm doado muitos livros e ainda queremos mais. Temos também um grupo de estudos. Os responsáveis são Cléo Martins e Roberval Marinho. Principalmente esses dois estão à frente, que são os nossos filhos-de-santo pensadores. Ana Rúbia é nossa auxiliar, porque ela faz tudo aqui. Temos também um projeto com o Comunidade Solidária e o Unicef. A responsável é Tereza, outra filha-de-santo, que está fazendo várias oficinas para dar ocupação a essas crianças. Estamos todos preocupados com isso. Também fazemos aqui em casa seminários entre nós mesmos, de vez em quando, para bater papo. É daí que surgem coisas como o Festival Alaiandê Xirê, uma criação de Cléo e Roberval. Este foi o terceiro ano do Alaindê e está dando certo, fazendo sucesso, está repercutindo lá fora. Nós juntamos o lúdico com o espiritual e deu certo, tem tido muita aceitação das pessoas.

AM- Aqui no Afonjá os homens só podem exercer os cargos de obá, ogã, alabê e axogum?

MS - É. Tem outros mais, mas esses são os principais.

AM- A senhora tem idéia de quantas são as pessoas ligadas à casa, os iniciados, os filhos-de-santo?

MS - Isso é impossível, porque aqui é uma passarela, né? Nós temos efetivamente os feitos de santo, os iniciados, um grupo muito grande. Mas eu não sei o número. Temos também os visitantes, os clientes, pessoas que necessitam e vêm até aqui. Um grupo transitório, eles vão e voltam.

AM- Diariamente vêm pessoas aqui?

MS - Quase que diariamente. O meu dia de atender era quarta-feira, mas é tanta gente que vem… Fico com pena de ver as pessoas chegarem e voltar chorando. Eu aí atendo e isso até impede a minha vida social. Eu quase não faço mais nada a não ser trabalhar aqui dentro. Virei uma escrava. Mas a compensação é que a gente tem a sensação do dever cumprido, vê que conseguiu ajudar algumas pessoas. A gente não se julga onipotente, mas damos graças ao orixá por conseguir ajudar. Quando nada, o bem-estar. Muita gente vem aqui para nada também, porque gosta do espaço. Vem, senta-se aí, passa a tarde sentado nesse espaço e vai tranqüilo. Não toma um banho, não faz nada, só vem pelo axé. Deve ser o astral que é bom, não é? (Risos).
Pronto, iaiá.(06 de janeiro de 2001)